Julio Cabrera

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Julio Cabrera é um filósofo argentino que atualmente vive no Brasil.


Ética negativa[editar]

Projeto de Ética Negativa (1989)[editar]

  • Que o ser é "melhor" do que o nada, é a Grundsatz de toda a moralidade ocidental. O ser nunca é considerado como uma escolha entre outras.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, página 17
  • Deus ainda responde processo pelos "males" do mundo, e a opção fatal pelo ser cria, ipso facto, o reino da moralidade. Toda a parafernália de perdições e salvações deverá seguir-se à ansiosa criação de um mundo imperfeito, ou, para melhor dizer, à imperfeita criação de um mundo qualquer. Por que a criatura não preferiria não sofrer em absoluto, em vez de ser-lhe oferecida depois a possibilidade de "salvar-se" do sofrimento?
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, páginas 19–20
  • Dada a contingência do nosso nascimento, toda dor é inútil. A dor inútil é insuportável. Ergo, ter nascido é insuportável. Nesse sentido, nascer é imoral. Nascer carrega um peso moral, uma problematização: năo se trata, como habitualmente pensa a Ética afirmativa, de um fato puro, sem manchas, fora de toda suspeita. As Éticas afirmativas estăo dispostas a sustentar a imoralidade da totalidade do mundo única e exclusivamente para salvar a moralidade da sua origem. A Ética negativa sugere a postura inversa, o resgate da moralidade do mundo após a descoberta da imoralidade da sua origem. (E o próprio problema das Teodiceias inverte-se: como são compatíveis a inocência do mundo com a maldade divina?)
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, página 21
  • O sofrimento é algo que deve ser, pura e simplesmente, ligado com o "ser". Algo não pode ser "posto em funcionamento" sem dor. Assim, a dor não é maldição, nem castigo, nem anomalia, nem desajuste, nem desvio, mas a conditio sine qua non do ser. A opção pelo ser é necessariamente opção pelo sofrimento. As Éticas afirmativas, na medida em que respeitem o valor da coerência, não deveriam proclamar como preocupação sua a eliminação da dor.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, página 22
  • A doença costuma aparecer igualmente como excepcional, dentro de um pretenso "estado de saúde". A dificuldade para mensurar a saúde está no fato de a maioria dos indicadores existentes ser negativa, isto é, servir para ponderar a ausência de saúde. A boa saúde, contrariamente, pode ser vista como uma anomalia acidental, não como um atributo intrínseco e, muito menos, como um "direito" da espécie humana. Perante a doença, o que habitualmente chamamos de "vida" é uma sobrevivência, um "resistir, um "manter-se", um "levar adiante", um "prolongar", um "puxar para frente". A questão ética fundamental consiste em que, como geradores potenciais de vida de outro ser humano, não podemos fazer previsões acerca de como serão os mecanismos de sobrevivência do ser que nasce, a sua sensibilidade perante a dor estrutural. Não temos nenhum direito moral de fazer uma previsão padronizada a respeito dessa sensibilidade. A sinistra alegria (sinistra e superficial) com que a nossa sociedade recebe a gravidez e o nascimento, deve necessariamente enfrentar-se com as próprias categorias éticas vigentes, se formos profundos na nossa reflexão.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, páginas 22–23
  • A nossa organização social assegura acriticamente a moralidade da paternidade, e a procriação é apresentada como valor naturalmente positivo. Pelo contrário, qualquer problematização desses valores será vista como demoníaca. Mas a situação reflexiva está perfeitamente clara: ou abandonamos o valor da "evitação da dor inútil", ou problematizamos a moralidade acrítica da paternidade. Se a reflexão moral deve ser racional, buscar a verdade etc. deve enfrentar essa alternativa.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, página 28
  • Se a liberdade, de acordo com a própria moralidade tradicional, é um valor ético fundamental, o próprio funda­mento da eticidade, deve conscientizar-se de que a geração de um filho poderá ser o primeiro grande desrespeito pela liberdade da pessoa humana. A questão da liberdade sofre aqui do mesmo processo que a questão da dor: trata-se de um valor ético que a Ética tradicional afirmativa não está em condições de radicalizar.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, página 28
  • Mesmo nos “sacrifícios” pacifistas, estilo Gandhi, há uma imagem clara do outro como “inimigo”: o “pacifismo” de Gandhi era uma estratégia bélica, uma arma que punha uma fé fundamental na eficácia da guerra. O afirmativo não deixa de ser afirmativo porque alguém esteja disposto a morrer por ele. Ao contrário, esta “morte no afirmativo” é o fechamento do círculo do afirmativo, que consegue também englobar a própria morte dentro de si. Gandhi ganha as simpatias da Humanidade (depois de morto, é claro!) porque agora a Humanidade possui a imagem (não a presença) de um defensor radical da organização oficial da vida. A Humanidade ama seus mártires, seus destruidores (há muitíssimos mais monumentos de militares que de poetas), pode utilizá-los, manipulá-los, fazer filmes milionários com suas figuras etc. etc. A sociedade pode ganhar muito dinheiro com um mártir. Vive-se mais barulhentamente depois da morte de Gandhi que depois da morte de Drieu La Rochelle.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, página 54
  • Matar alguém e dar nascimento a alguém são duas ações violentas através das quais, magicamente, o homem tenta colocar-se no lugar de Deus. A vítima de um homicídio é sempre indefesa, porém jamais tão indefesa quanto a vítima de um nascimento. Um parto tem tanto sangue inocente quanto um homicídio. Se procriar é uma opção livre, então a vida é a dor inútil fundamental.
    • Projeto de Ética Negativa, 1989, contracapa

Crítica de la moral afirmativa: una reflexión sobre nacimiento, muerte y valor de la vida (1996)[editar]

  • À luz da ontologia natural, não é correto o argumento de que não sabemos nada sobre nossos possíveis filhos, por exemplo, sobre a capacidade que terão para superar a dor estrutural; porque mesmo que não saibamos, por exemplo, se irão gostar de viajar, trabalhar ou estudar línguas clássicas, sabemos que serão seres indigentes, decadentes, abandonados, que começarão a morrer desde o nascimento, que enfrentarão e serão caracterizados por disfunções sistemáticas, que terão que constituir seus próprios seres como seres contra os outros - no sentido de lidar com a agressividade e ter que descarregá-la sobre os outros – que perderão aqueles que amam e serão perdidos por aqueles que os amam, e o tempo levará tudo o que conseguirem construir.
    • Crítica de la moral afirmativa: una reflexión sobre nacimiento, muerte y valor de la vida, 1996
  • Sem dúvida, não justificaríamos moralmente o comportamento de alguém que enviou um colega para uma situação perigosa dizendo: "Eu o enviei para lá porque sei que ele é forte e vai conseguir se virar". As "forças" do recém-nascido não aliviam em nada a responsabilidade moral do procriador. Qualquer um responderia: “Isso é irrelevante. Seu papel na questão consistia em enviar as pessoas para uma situação em que você sabia que era difícil e dolorosa, e você poderia evitá-lo. Suas previsões sobre suas maneiras de reagir não diminuem em nada sua responsabilidade”. No caso da procriação, o raciocínio poderia ser o mesmo, e de maneira notória e enfática, já que em qualquer situação intra-mundana com pessoas já existentes em que enviamos alguém para uma situação conhecida como dolorosa, o outro poderia sempre fugir da dor na medida em que seu ser já está no mundo e ele poderia prever o perigo e tentar evitar ser exposto a uma ação desconsiderada e manipuladora. No caso de quem vai nascer, pelo contrário, isso não é possível porque é precisamente o seu próprio ser que está sendo fabricado e usado. Com relação ao nascimento, portanto, a manipulação parece ser total.
    • Crítica de la moral afirmativa: una reflexión sobre nacimiento, muerte y valor de la vida, 1996
  • Assim, quem diz procriar por amor, como outros matam por ódio, pode ter dito uma verdade, mas, sem dúvida, essa pessoa não deu qualquer justificativa moral para a procriação. Dizer que se teve um filho "por amor" é uma maneira de dizer que você o teve compulsivamente, de acordo com os ritmos selvagens da vida. De um modo semelhante, podemos amar intensamente nossos pais e, ao mesmo tempo, considerar a paternidade ético-racionalmente problemática, e visualizar que fomos manipulados por eles. Posso continuar a amar depois de ter detectado imoralidade, não há nada de contraditório nisso. Nem justificaríamos moralmente um homicídio dizendo que o fizemos por ódio, nem um suicídio dizendo que o fizemos "por ódio contra nós mesmos". Algo pode continuar a ser eticamente problemático mesmo quando guiado pelo amor.
    • Crítica de la moral afirmativa: una reflexión sobre nacimiento, muerte y valor de la vida, 1996

Porque te amo, não nascerás! Nascituri te salutant (2009)[editar]

  • As pessoas proclamam que a “experiência da paternidade (e maternidade) é extraordinária” e a recomendam a todos (e denigrem aqueles que não passaram por ela). Mas eu me pergunto: "extraordinária para quem?". É certamente extraordinária para os genitores. Quando estes dizem que não apenas eles serão felizes e realizados com a experiência, mas também seus filhos, eles não percebem a insondável assimetria e descompasso entre essas duas experiências, a experiência de gerar e a de ser gerado. O gerado está obrigado a aceitar a experiência, a torná-la boa e interessante (e inclusive extraordinária); qual outra saída teria? Esta obrigação não está presente nos genitores, onde o caráter "extraordinário" da experiência é parte de um projeto envolvente e unilateral. As situações de ambas as partes são incomparáveis. Assim, quando alguns replicam: "Não tem sentido você querer mostrar que a vida é má; você não pode decidir pelo seu filho; talvez ele goste de viver", o que isso quer dizer? Claro! Em certo sentido, ele é obrigado a gostar! Mas esse "gostar" será sempre já um desesperado aceitar. O gerado não está em condições de, realmente, gostar. Poderia gostar se tivesse realmente escolhido. Diante do fato consumado, ele é obrigado a agarrar-se desesperadamente à vida. Ou "gosta" ou é destruído (por uma doença nervosa, ou pela sevícia dos outros).
  • O ser da vida humana é ter surgido como uma força contrária a terminalidade interna do ser: o ser humano decai, definha e falece no sentido de fazer tudo isso de maneira opositiva, reativa, fugitiva, como se o ser que lhe foi dado não pudesse ser vivido em sua positividade, mas sempre negativamente, reativamente, criativamente. Mas a terminalidade do ser acabará ocupando todo o espaço criativo, engolindo o “ser-mortal” que decai, definha e falece. Em seu lugar aparecerá então o buraco que o constituía desde sempre, e que só agora se tornou evidente.
  • Um agente genuinamente racional escolheria nascer? Pode-se reler a minha argumentação contra R. M. Hare, na Crítica da Moral Afirmativa [...] Ali eu sugiro que, no experimento segundo o qual o não-ser é magicamente consultado acerca de seu possível nascimento, Hare está errado ao supor acriticamente que "ele" escolheria, sem dúvida, nascer. (Esta é a tendência afirmativa habitual). Pois supomos que ele seja humano, ou seja, uma criatura racional capaz de ponderar razões. A informação que se fornece a esse ser possível, no experimento de Hare, é incompleta e tendenciosa. Deveríamos também dizer a ele que, se nascer, não terá qualquer garantia de nascer sem problemas; que se conseguir nascer sem problemas, sofrerá, quase seguramente, de muitos males intramundanos; que se conseguir se livrar deles (e isto é intramundanamente possível, mesmo que difícil), não poderemos dar-lhe qualquer garantia acerca do seu tempo de vida, nem do tipo de morte que vai ter, além de ter de sofrer a morte dos que chegar a amar e de ter sua morte sofrida pelos que lhe amem (se tiver sorte de amar alguém e de ser amado por alguém, o que tampouco está garantido). Haverá que lhe dizer que, se se livrar de alguma morte acidental violenta, decairá em um número bastante escasso de anos (assim como as pessoas que ama e com as quais se importa), e que ele tem altas chances de transformar-se num doente terminal que pode sofrer terrivelmente até a hora de extinguir-se. Se for possível ainda ao não-ser, após ter assimilado toda esta informação, escolher nascer, não poderíamos alimentar dúvidas bastante bem fundadas acerca de sua qualidade como "agente racional"?
  • Os filósofos falaram sempre da vida como uma "preparação para a morte", e da filosofia como um “aprender a morrer”. Mas há uma sabedoria anterior a esta: aprender a abster-se. Não colocar ninguém na situação de ter de aprender a morrer.

Acerca da superioridade intelectual e existencial do pessimismo sobre o otimismo (2010)[editar]

  • MV diz que a rejeição da vida aparece em estados posteriores, mas que na hora de nascer, e já antes, tudo é aceitação da vida. Mas, é isso assim?? O que dizer do alarido com que as crianças nascem, do choro primordial, do primeiro contato traumático (estudado por Freud) com o mundo? Não é o alarido da criança já a sua primeira opinião filosófica sobre o mundo? Por que ele não nasce rindo, ou, pelo menos, calmo? Quando o bebê é despejado no mundo no momento do parto, a sua primeira reação é pessimista, um protesto pela desconsideração e o incômodo, um alarido inicial que ele não teve que apreender, como sim terá que apreender a rir, nas primeiras semanas ou até meses de vida (o que já marca, no próprio ato inaugural de ser, a assimetria pessimista: o bebê aprende a rir, mas nasce chorando); o bebê nasce, trazido à força por desejos alheios, num inicial desespero, num grito de profundo e abissal desamparo, num terror primordial que, logo de imediato, a través de movimentos, caricias, cuidados, etc, os adultos tentarão suavizar; movimentos que se repetirão ao longo de toda a sua vida: desespero inicial seguido de cuidados protetores; mas os cuidados são posteriores ao desespero; é o desespero o primeiro, e os cuidados as reações. Não estão no mesmo nível. Assimetria!
  • As crianças pequenas continuam chorando muito, durante vários anos; choram e choram permanentemente; podem incomodar-nos, muitas vezes, mas elas estão certas e temos que aceitar, comovidos, seus choros como uma reação perfeitamente justa ao que foi feito com elas; algumas choram até bem avançada idade, até encontrar outras formas de protesto e manifestação do sofrimento; mesmo adultos, continuamos chorando das mais variadas formas.

Entre duas mortes: morte morrida, morte nascida (2011)[editar]

  • O que deve entender-se por ética neste contexto inicial de reflexão, não pode ser nada demasiado complicado, nem nada que esteja fortemente comprometido com teorias éticas particulares, mas uma noção completamente básica que possa ser aceita por todas elas. Proponho falar de uma "Articulação Ética Fundamental" (AEF, de agora em diante) para referir-nos ao seguinte conceito: "Nas decisões e ações, devemos levar em consideração os interesses morais e sensíveis dos outros e não apenas os próprios, tentando não prejudicar os primeiros e não dar uma primazia sistemática aos últimos apenas pelo fato de serem nossos interesses".

Summary of the ethical question in Julio Cabrera's Philosophy (2014)[editar]

  • O melhor seria não ter nascido. Não ter nascido é, em uma ética negativa, o bem absoluto; mas é precisamente o bem que não pode ser buscado. (Atenção: a situação é mais radical do que no caso de bens que podem ser buscados mas nunca alcançados; não nascer não pode nem mesmo ser buscado).

Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável (2018)[editar]

  • Assim como não percebemos que a terra se move – para todos os efeitos, ela está perfeitamente quieta –, assim como não conseguimos visualizar a gradativa morte do planeta apesar de estarmos convencidos disso por argumentos científicos; assim como não percebemos a evolução das espécies apesar de sabermos que elas mudam; assim como percebemos a matéria como quieta e compacta, embora toda a sua estrutura molecular esteja em permanente movimento; da mesma forma não percebemos a terminalidade do ser nos comportamentos humanos corriqueiros, e vemos todas as coisas como estáveis e permanentes. Vemos o velho e o gasto (também os humanos velhos) como tendo sido sempre assim, não conseguimos visualizá-los como devir, como tendo se desgastado e se tornado velhos.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, página 279
  • Trata-se de grandes módulos temporais, mesmo gigantescos, da transição das coisas para seu fim, que – desde nosso minúsculo módulo temporal, singular, finito e perspectivo – nos fazem ver como estático e permanente o que está impregnado e corroído de temporalidade, fluidez e terminalidade. Como se o próprio ser já aparecesse ocultando a sua natureza definhante. Como se os mecanismos humanos de ocultação do terminal seguissem o próprio ritmo ocultador do próprio ser, como se todo o humano tendesse a ocultar a sua temporalidade terminal e seu assustador desvalor atrás de uma temporalidade lenta e tranquilizadora. Se pudéssemos nos assomar por um instante na temporalidade vertiginosa do ser-terminal do ser – como aquele cientista demente do filme O homem que enganou a morte, de Terence Fisher (1959), que envelhece e morre em poucos segundos diante das câmeras –, ficaríamos aterrorizados. Conseguimos suportar o ser-terminal do ser porque ele nos é administrado por conta-gotas, pouco a pouco, numa temporalidade a prazos.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, páginas 279-280
  • Quando alguém (inclusive os filósofos) defende a pretensa beleza de "ter filhos", eles referem-se ao prazer de "vê-los crescer", primeiro crianças, depois adolescentes, depois adultos formados e bem encaminhados (isso acontece nas classes sociais mais abastadas, mas também, em parte, nas mais modestas). Entretanto, é estranho que eles, quando falam em filhos, param inexplicavelmente nesse ponto e nunca se referem a seu declínio, seu envelhecimento, sua decadência, talvez porque pensam que não vão estar ali para contemplar esse declínio. Os progenitores preferem não ver o final desse processo, como se o filho dissolvesse no ar. O aspecto residual da paternidade é omitido; se visualiza o filho apenas como florescimento. A morte do filho-resíduo se recusa a qualquer visibilidade. O acabamento dos processos é escamoteado como algo sujo e indecente, não digno de ser mostrado.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, página 306
  • Toda a nossa vida é vivida no registro da ocultação; mas a ocultação é, sempre, fracasso da ocultação; ela mostra ao tempo que oculta (na verdade, mostra ao ocultar, num único gesto malogrado). O residual não se deixa eliminar e insiste em voltar para a superfície depois de todos os nossos esforços por despejá-lo, como os detritos de uma privada entupida. A nossa infelicidade consiste em sermos seres terminais que não fazem a menor ideia de como terminar. Só sabemos começar processos, não sabemos acabá-los. Somos “ultimados” pelo não ser que somos antes de conseguir aprender a terminar nós mesmos. Somos ultimados pelo ser que não conseguimos ultimar. Morremos sempre atropelados pela morte, sem ter aprendido a morrer. Como nos filmes, na vida, o que mais importa é “como termina”, “que fim levou”. (Curioso que os humanos não gostam de filmes – como “Titanic” – em que o herói morre no final, mas dizem gostar das suas vidas, que são sistematicamente histórias em cujo final morre o herói: nós mesmos).
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, página 307
  • O nosso "amor pela vida" é sempre, de alguma forma, amor não correspondido (...) A vida não se importa conosco, nem sabe que andamos por aí. Contrariamente ao que se diz, ela não dá nada de graça, tudo o que conseguimos é arrebatado. A vida não precisa de nós, nós a perseguimos, nos humilhamos, suplicamos, aceitamos tudo dela, os maiores sofrimentos. Muitos são capazes das piores atitudes morais apenas para conservá-la mais um pouco (...) Aos que perguntem "Mas, não amas a vida?", deveríamos responder, num viés mais poético: "É claro que a amo; sempre a amei. Eu sempre quis viver, mas é a vida que não me deixa viver, que me limita, machuca, me faz adoecer e me destrói. Não sou eu quem não quer viver, pois a vida é tudo o que eu queria. Eu quis construir e a vida derrubou tudo o que eu ergui; quis amar e a vida matou tudo o que eu amei. Não me digam que não amo a vida; é ela que não me ama, que não ama ninguém.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, páginas 350-351
  • É muito curioso que, às vezes, seja considerado cruel ou desumano o fato de colocar a questão da ética da procriação, como se isso mostrasse uma rejeição das crianças que estão para nascer, uma espécie de ódio pelas suas vidas. Isso é uma total deformação das intenções de uma reflexão ética sobre procriação. Pelo contrário, essa reflexão está motivada por uma profunda preocupação pelas crianças possíveis, pelo risco de seu surgir ser consequência de um ato impensado, constrangedor e agressivo para pequenos seres indefesos, sobre os quais se pensa ter pleno direito de planejar tudo sobre suas vidas à nossa inteira vontade e satisfação. Grande parte da revolta que desperta no mundo adulto a simples colocação dessa questão indica que os progenitores obtêm um prazer muito grande no ato procriador, e reagem — às vezes iradamente — contra quem comove essa poderosa fonte de prazer, e consequentemente o imenso poder sobre aquele que vai nascer. Esse poder total sobre outra vida é intensamente sedutor e ninguém quer abrir mão dele. Mas na reflexão ética, qualquer que seja o tema tratado, nunca se trata de avaliar apenas a satisfação que obtemos de nossos atos, mas de ponderar se aquilo que fazemos é correto ou não, se o poder que conseguimos acumular sobre seres mais indefesos está ou não eticamente legitimado.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, página 463
  • Claro que a possibilidade de o nascido não ter forças suficientes para suportar a luta pela vida é só isso, uma possibilidade, não uma necessidade; mas o ponto é que a sua mera possibilidade já é suficiente para a imputação moral. Não há relações causais firmes entre métodos de formação, educação e tratamento de filhos e seus destinos e escolhas. Como se diz no cotidiano, isso é, em grande medida, "uma loteria": aquelas providências que os genitores tomam para evitar certos riscos podem ser, precisamente, as que precipitem os filhos neles. As muitas vidas que acabam catastroficamente parecem um preço muito elevado para justificar moralmente a "aposta" da procriação, mesmo aquela feita da maneira mais séria possível pelo "procriador responsável". (As numerosas catástrofes "compensam" algumas vidas "bem-sucedidas"? Podemos fazer cálculos de "ganhos" e "perdas" com vidas humanas possíveis, mais do que o fazemos com vidas humanas reais?). Mas o importante é que mesmo não se apresentando nenhuma dessas situações calamitosas, o "triunfo" vital do filho, o fato de ele ter conseguido aquele "equilíbrio" (sempre moralmente oneroso, pela tese da inabilitação) entre a invenção de valores e a estrutura terminal do ser, não isenta os genitores da responsabilidade de tê-lo colocado no risco de cair em alguma daquelas catástrofes. Além do mais, mesmo o filho tendo "ganhado" a aposta, seu "triunfo" ficará para sempre e indefinidamente vinculado à unilateralidade do ato procriador: o filho terá ganhado a aposta, mas ela nunca terá sido, radicalmente, a sua aposta. Ele poderá, como máximo, ganhá-la, mas nunca poderá ter escolhido concorrer.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, página 508
  • O mais curioso é que costuma ser o habitante das classes mais pobres quem cultiva uma adoração sem limites pela mãe, por tê-los criado com enormes sacrifícios. Sofrem todo tipo de miséria, pobreza extrema, doenças, delinquência, discriminação, exclusão e tortura, sem jamais dar-se conta de que foram seus pais os que os colocaram naquela situação para seu próprio prazer ou por descuido irresponsável. E quando o filho comete algum ato prejudicial levado pelo desespero no qual foi colocado, ainda as pessoas se compadecem da "pobre mãe" pelo fato de ter um filho "tão pouco agradecido". Toda a miséria herdada passa magicamente a ser responsabilidade do filho! Aqui é utilizado o mesmo esquema argumentativo das Teodiceias: o Pai puro que fez seus filhos com amor, dando-lhes algo de muito valioso, e também os fez "livres"; os filhos pecaram, pois, livremente, se comportando mal e estragando algo de muito precioso que lhes fora dado, provocando desgostos a seus pobres pais. Esse esquema é quase tragicômico porque é exatamente o inverso o que parece verdadeiro: nossos pais nos deram de maneira interesseira, para seu próprio prazer e benefício, algo de muito duvidoso valor que nós agora, dentro da sujeição e da necessidade — ou seja, muito longe de qualquer genuína "liberdade" — temos que tentar melhorar com muito esforço. Enquanto não invertermos essa valoração predominante em nossas sociedades, as questões éticas nem poderão começar a ser pensadas seriamente, pois a relação da mãe com os filhos, visceralmente egocêntrica e manipuladora, continuará sendo considerada como paradigma de moralidade ética, o que parece, no mínimo, um erro crucial de apreciação, uma gravíssima mitologia, uma colossal mistificação.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, páginas 538-539
  • O "agradecimento eterno" não fica apenas no plano dos inícios da vida, mas ao longo de toda a longa dependência dos filhos a respeito dos progenitores durante os primeiros dez anos de vida — nos quais eles são inclusive objetos de exibição — e no duro período da adolescência, em que os filhos são tratados permanentemente como "mal-agradecidos", como se nunca acabassem de pagar a sua imensa dívida; tudo o que é comprado para eles, para seu futuro, seus estudos, todas aquelas coisas que jamais foram pedidas pelo filho, que fazem parte de um investimento afetivo e econômico dos progenitores, fica sendo permanentemente e durante longos e duros anos, apresentado como prova de sacrifício e amor, como objeto de eterna gratidão, nunca totalmente retribuída pelos filhos mal agradecidos. A questão da paternidade configura um poderoso mecanismo de poder no qual mesmo a violência física de castigos e punições é justificada em prol da formação, nunca pedida, daquele ser jogado no mundo, tentando construir anteparos para não ser destruído pela imensa dádiva recebida.
    • Mal-Estar e Moralidade. Situação Humana, Ética e Procriação Responsável, 2018, páginas 539-540

O Nascimento como problema bioético: primeiros passos para uma bioética radical (2018)[editar]

  • As pessoas falam sobre a "maravilhosa experiência da paternidade". Vocês já se perguntaram por que é tão maravilhosa? Talvez seja maravilhosa porque é muito manipuladora; manipular dá muito prazer, porque você tem uma pessoa em suas mãos. Quando a criança é pequena, você a veste como quiser, penteia como quiser, corta o cabelo, põe na mesa, como já vi frequentemente. Os adultos brincam com a criança, pessoas que não teriam nenhum assunto de conversa ou interação, quando suas vidas cinzas, vazias e insignificantes viriam à tona, a criança as salva.
    • O Nascimento como problema bioético: primeiros passos para uma bioética radical (acessível no vídeo "BioÉtica Radical (subtitled in English) 2018" em Youtube), 44:38-45:22
  • A tradição moral diz: temos muitas tendências naturais, mas como seres humanos éticos temos que tentar superar os impulsos naturais. Por exemplo, somos naturalmente violentos; os seres humanos são naturalmente muito egoístas, tentando concentrar suas decisões em si mesmos, mas a ética está sempre dizendo: você tem que lutar contra essas tendências naturais. Você não pode ser todo o violento que a natureza comanda, você não pode ser tudo egoísta que a natureza pede. Então, se você me disser que a procriação é natural, ser natural não mostra que ela é moral. Pelo contrário, filósofos brasileiros esquecidos como Tobias Barreto colocam exatamente o oposto: Tobias Barreto pensava que quando algo é natural é mau, e nós temos que combatê-lo (a escravização de um povo sobre outro é natural, mas é cultural que a escravidão não deve existir.) Então não me diga que a procriação é natural e por isso temos que fazê-lo. Toda a moralidade humana não é natural, toda a moralidade humana é artificial, assim como nossos sistemas de alimentação em restaurantes sofisticados também são artificiais e antinaturais. Qual é o animal que come do jeito que comemos? Até nossa sexualidade é artificial; não é puramente instintiva, mas em grande parte simbólica. Se você tivesse esse argumento em sua manga, ainda teria que mostrar que o que vem da natureza é moral, porque há muitos argumentos que mostram o que vem da natureza pode ser o oposto da moralidade
    • O Nascimento como problema bioético: primeiros passos para uma bioética radical (acessível no vídeo "BioÉtica Radical (subtitled in English) 2018" em Youtube), 47:49-49:30

Devorando Nietzsche: por um niilismo sul-americano (2022)[editar]

  • Não somos niilistas da vida, é a vida que é niilista de nós; é a vida que nos nega, nos expulsa e nos mata. Por acaso nós não queremos viver intensamente e para sempre? Somos nós os que negamos a vida? Não é a vida que nos nega dia a dia?
  • Não é a moral que nega a vida, é a própria vida que se nega, que se mata matando-nos. Vida suicida. Tentamos viver intensamente, mas a vida, intensamente, nos mata. A vida mesma é cética, não acredita em nada do que ela mesma cria. Apenas cria para destruir o que criou. Ela não precisa de niilistas para negar-se, não precisa de suicidas para suicidar-se. Sofremos por sermos parte da arma suicida da vida, parte do que ela cotidianamente mata.
  • Os humanos vivem de maneiras automáticas, mantêm entre si relações rotineiras, não sabem quase nada sobre aqueles outros humanos com que lidam diariamente; conhecimentos sumários sobre os outros são suficientes para trabalhar e comportar-se. Cumprimentam-se e perguntam "como estão", mas já não escutam a resposta; querem apenas saber se está "tudo bem" para poder continuar levando adiante distraidamente suas relações epidérmicas. E se alguém manifesta, por acaso, que está mal (que está muito doente, ou endividado), seu interlocutor ficará calado, como se o outro tivesse quebrado uma sagrada regra do convívio; depois de alguns minutos dirá: "Mas, fora disso está tudo bem, não é?". Os humanos acharam essa forma descontraída, indiferente, sumária e autocentrada de "levar a vida" quando perceberam que viver a vida, realmente vivê-la e não apenas "levá-la", implicaria numa enorme despesa em termos de sofrimento, solidão, reflexão e ligação com o mundo.
  • Aqueles que vivem de maneira distraída costumam ser extremamente insensíveis para com os sofrimentos e necessidades dos outros. Eles prejudicam outras pessoas já "sem intenção", como a pessoa que fica obstruindo a passagem dos outros sem dar-se por conta de que incomoda. Ele costuma desculpar-se dizendo que "não teve a intenção", e isso é, habitualmente, verdade. Entretanto, ninguém deveria, neste mundo tenso e cada vez mais povoado, se descontrair até o ponto de incomodar aos outros "sem intenção". Deveríamos nos concentrar mais, ficar mais atentos, não nos descontrairmos até o ponto de esquecer que os outros estão sempre por perto, e que, movendo nossos braços de maneira exagerada e desatenta, podemos derrubar alguém "sem intenção".
  • Essa minoria que permanece tensa, que não se distrai, que não consegue se descontrair, que escuta aos outros, que se comove com seus relatos, que mantém uma sensibilidade aguda para os problemas e sofrimentos dos outros, esses costumam ser doentes, inclusive fisicamente, como o príncipie Mishkin de "O Idiota" de Dostóievski, capaz de uma entrega sublime aos outros apenas por sofrer de epilepsia. As pessoas "normais" são descontraídas e, portanto, insensíveis e moralmente desconsideradas, aquelas que bocejam enquanto seu amigo está lhes falando de seus problemas mais terríveis.
  • Aqui os humanos vulgares parecem ensinar algo aos filósofos raros: se quiseres manter a tua saúde mental e não ser destruído pelos impactos da vida, melhor é ignorar do que saber, assumir uma forma insensível, sumária e imoral de viver, não levar as coisas tão a sério, não tentar conhecer ninguém em profundidade, não saber demasiado sobre o mundo. Os vulgares ensinam aos sábios a verdadeira essência negativa da vida, uma vida tão má, tão insalubre, tão dolorosa e tão injusta, que a única maneira de enfrentá-la é mediante algum tipo de ignorância, e não, como sonharam sempre os filósofos, uma sabedoria que tentaria um "melhoramento" de si. Pelo contrário, a vida é tão árdua e desconsiderada que, para poder vivê-la, é mais conveniente ser um humano pior do que já somos; mais insensível, mais imoral, mais ignorante. No templo da sabedoria, paradoxalmente, deveríamos pregar este letreiro: Ignora-te a ti mesmo! Pois quem garante que sabedoria e vida caminham numa mesma diração?
    • Devorando Nietzsche: por um niilismo sul-americano (2022), página 80 ISBN 978-65-86676-43-3
    • Descrição: Nos lembra o que diz Fernando Pessoa, através do pseudônimo de Bernardo Soares, no Livro do desassossego: "O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade."


Filosofia da linguagem e da lógica[editar]

  • O que observamos, por exemplo, quando nos envolvemos em discussões éticas sobre procriação, aborto ou pena de morte, ou em debates lógicos sobre analiticidade, lógicas não-clássicas ou conexões lexicais, é que as posições opostas são perfeitamente sustentáveis, embora não sejam posições que nós próprios preferimos tomar. Entendemos que nossa posição sobre, por exemplo, o aborto, vem de um conjunto de suposições, preferências, desgostos, experiências passadas, educação e assim por diante, todos elementos e circunstâncias que orientaram nossa escolha de categorias, conceitos e modos de raciocínio que certamente deve diferir muito do conjunto de argumentos de nossos interlocutores em um diálogo sobre o assunto. Qualquer coisa que possamos apresentar sobre tópicos controversos como esses seria normalmente oposta ou recusada pela outra parte através de todos os tipos de objeções. A oposição não é uma anomalia, mas a forma atual em que a filosofia se desenvolve. Dois seres humanos envolvidos em uma discussão sobre questões filosóficas irão naturalmente e forçosamente diferir em substância e método em quase qualquer assunto em questão. Qual é o ponto em tentar impor a própria perspectiva?
  • Apesar da soberba afirmação de Singer dele ter, finalmente, descoberto a solução definitiva do problema do aborto, podendo encerrar definitivamente a questão, a sua "demonstração" depende de muitas sub-argumentações possíveis (que ele prefere não "ver"). Seu argumento pró-aborto só consegue ser estabelecido se aceitarmos algum tipo de ética utilitarista segundo a qual o bem-estar dos seres humanos concretos está por cima de qualquer ideia abstrata ou metafísica de "pessoa humana" (algo que as tornaria "intrinsecamente valiosas"). Também depende da ideia de que o eticamente relevante é que os seres humanos não sofram dor inútil, e da tese de que um ser humano pode definir-se mediante um conjunto de propriedades relevantes bem determinadas (os famosos "indicadores de humanidade"). Também depende de certa definição muito específica dos termos "matar" e "inocente" na expressão "ser humano inocente", e da desativação da ideia da "potencialidade", no sentido de alguém poder ser potencialmente uma coisa num momento t + 1, que lhe daria direitos em t. Trata-se de um alto número de pressupostos sem os quais a conclusão “objetiva” e "definitiva" não decorreria. Qualquer arguidor que não aceite pelo menos um desses pressupostos, não aceitará os "resultados incontestáveis" de Singer. E contrariamente ao que ele afirma, os que não os aceitam não estão "simplesmente equivocados", mas assumem outros pressupostos e Gestalten perfeitamente plausíveis, sustentáveis e racionais dentro da rede de argumentações. Singer ignora drasticamente todos os questionamentos e obstáculos da sua linha de argumento (por exemplo, as controvérsias sobre os "indicadores de humanidade") e é apenas dessa forma que ainda consegue alimentar a ilusão de ter "resolvido" o problema do aborto.
  • Parto da perspectiva de que se deve considerar como “filosofia da linguagem” tudo aquilo que os filósofos pensaram e desenvolveram em termos de reflexão sobre a linguagem, seja qual for sua perspectiva e sua metodologia de acesso (analítica, hermenêutica, fenomenologia, filosofia transcendental, crítica de ideologias, psicanálise) (...) A minha ideia é que essas questões [da linguagem] são mais bem visualizadas não dentro de uma única perspectiva, mas na confluência de várias delas.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 14.
  • Parafraseando aquilo que Norberto Bobbio (…) disse certa vez acerca do marxismo, “uma das minhas frases preferidas é que hoje não se pode ser um bom marxista sendo apenas marxista. Mas o marxista tem uma tendência irresistível a ser apenas...marxista”, poder-se-ia dizer que hoje não se pode ser um bom filósofo analítico sendo apenas analítico. Mas o analítico tem uma tendência irresistível a ser apenas...analítico.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 15.
  • Poder-se-ia dizer (…) que a linguagem interessa à filosofia na medida em que a primeira é entendida não apenas como “veículo” de conceitos, mas como um âmbito no qual os conceitos são constituídos, conceitos que permitem articular o mundo com o intuito de torná-lo significativo para nós. Dessa maneira, conceitos e significação vão juntos. Essa “significatividade” será entendida de maneiras muito diversas pelas diferentes filosofias da linguagem, e consequentemente a constituição de conceitos também será diversamente entendida. Denomino essa concepção, em contraposição à teoria veicular, concepção constitucional da linguagem.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 17.
  • Teoria do conhecimento, ética e estética não são apenas três disciplinas acadêmicas, mas três grandes acessos humanos ao mundo (...) Tornar o mundo significativo é uma empreitada epistemológico-ético-estética (...) Diferentes filosofias da linguagem acentuarão uma ou outra dessas funções. (...) Conhecer o mundo não é tudo o que o homem faz com ele, e muitos pensadores (Schopenhauer, Nietzsche, Freud) já duvidaram de que o conhecer deveria considerar-se como a relação mais básica e profunda que o homem pode estabelecer com o mundo.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 21.
  • (…) a minha abordagem dessas possibilidades de constituição da significação será largamente negativa, seguindo o ponto de vista que caracteriza a minha perspectiva filosófica geral acerca do mundo. Tal abordagem negativa , no terreno da filosofia da linguagem, será manifesta no fato de focar-se aqui não tanto a bem-sucedida geração de significação, que (de acordo com a minha perspectiva) raramente ou nunca acontece, mas precisamente os regulares obstáculos para sua instauração. (...) Mas a minha abordagem é negativa num sentido radical (…) cada uma das filosofias da linguagem se constitui como a negação do projeto esclarecedor das outras, cada uma constituindo-se como a formulação das insuficiências das outras.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 22.
  • (…) os “significados”, além de possuírem dimensões objetivas, são também instâncias hermenêuticas, temporal-históricas, precisamente aquelas que o filosofar analítico não pode captar, por estarem situados além dos seus limites de entendimento. “Significados” são instâncias que somente podem ser estudadas plenamente por outras filosofias da linguagem, capazes de incorporar aqueles elementos experienciais.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 55.
  • Wittgenstein é um filósofo suficientemente rico (ou suficientemente vago e impreciso) a ponto de sobre ele recaírem múltiplas interpretações. Interpretações analíticas, hermenêutico-transcendentais, fenomenológicas e marxiano-dialéticas da filosofia de Wittgenstein são examinadas (...) como recurso expositivo para melhor caracterizar diversos tipos e estilos de filosofias da linguagem do século XX. O assumido pluralismo (...) faz que se considerem todas essas interpretações como viáveis, de maneira que nenhuma delas descarte as outras como “falsas”, pretendendo ter apresentado “o verdadeiro Wittgenstein”. Isto supõe uma concepção do que seja filosofia e uma maneira de produzi-la e desenvolvê-la. Em cada uma das interpretações acentuam-se aspectos diferentes de um mesmo pensamento, como num experimento de Gestalt.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 66-67.
  • (…) o texto de Heidegger [Sobre a essência da fala] não será indicativo de um objeto já feito, mas consistirá em pistas sobre como viver uma experiência com a fala, experiência que não está “narrada” no texto, mas suscitada por ele. O texto tentará colocar o leitor numa espécie de âmbito ou “ambiente” que dê oportunidade a essa experiência.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 144.
  • Pensemos, por exemplo, na experiência de falar uma língua estrangeira e no que acontece quando se fala “perfeitamente e sem erros”, quando se fala alemão “como um alemão”, e no que acontece, pelo contrário, quando se fala imperfeitamente, quando, pelo balbuciar de quem “não domina uma língua”, se mostra uma dimensão vital que fica oculta na língua perfeitamente “dominada”.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 145.
  • Como Wittgenstein apontaria, a palavra “pobre” não possui uma referência absoluta, mas adquire seu sentido em referência a específicos jogos de linguagem, nos quais adquire dinamicamente a sua referência ao mundo. A pobreza à qual Marx se referia não necessariamente diminui por meio da ampliação dos benefícios aos trabalhadores dentro da sociedade alienada. Um escravo bem pago continua sendo um escravo e, por conseguinte, alienado e pobre, no sentido marxiano. (...) o trabalhador não se “despauperizou” no sentido relativo de Marx (e de Wittgenstein), mas ele continua alienado, vivendo com o mínimo (relativo à sociedade que o aliena) (...).
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 196-97* A psicanálise não é ciência. Mas muito poucas coisas são ciência.
  • A psicanálise não é ciência. Mas muito poucas coisas são ciência. A ética de Kant tampouco é ciência, mas é reflexão de alto nível sobre o ser humano em sua relação com o mundo, igual à reflexão de Freud. O que parece curioso é a escassa insistência com que se coloca o fato de a ética kantiana não ser ciência, enquanto todo mundo parece tão preocupado em salientar a não cientificidade da psicanálise.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág. 224.
  • O interesse da psicanálise pela quebra discursiva não é meramente teórico, mas também por estar regularmente marcada pelo padecimento, por algum tipo de envolvimento emocional (...) O padecimento não é um “acompanhamento” externo às anomalias linguísticas, mas parte constitutiva delas. A quebra discursiva é manifestação de uma quebra psíquica. A geração de anomalias e descontinuidades de linguagem está ligada à tentativa de evitação de desprazer. A compacidade real da cadeia linguística, ou seja, o correto preenchimento desta mediante autênticos signos geraria sofrimento insuportável.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág, 230.
  • (…) porque é ilegítimo eliminar filosofias? Aqui, juntam-se motivos lógico-epistêmicos e motivos éticos. (...) aquilo que foi pensado instaura uma forma de vida do pensamento, uma de suas possibilidades reflexivas. Quando uma visão de mundo é instaurada, ela é indestrutível como possível forma de pensamento, como direção da reflexão; o fato de ter pensado é inextinguível, e a única coisa a ser feita com essa visão é aceitá- la, complementá-la ou mesmo excluí-la, mas essas três atitudes implicam já a sua não eliminação: a exclusão filosófica de uma filosofia por parte de outra supõe o reconhecimento de sua existência, apenas se apresentam contraexemplos de suas leis (...) Não podemos eliminar outras filosofias por um motivo semelhante àquele pelo qual não podemos eliminar pessoas.
    • Margens das filosofias da linguagem, Editora da UnB, Brasília, 2009 (1ª reimpressão), pág, 276.
  • O estudo das “inferências lexicais” (se elas existem) deverá ser algo que oscila (...) entre a LM [Lógica Matemática] e a lógica informal. Em termos históricos, gostamos de dizer que se trata de uma empreitada wittgensteineana do período intermediário (...), algo que já passou para além da decepção da semântica unidimensional do Tractatus, mas que ainda não caiu na frondosa multidimensionalidade das Investigações Filosóficas (...) Inferências lexicais e Interpretação de redes de predicados.
    • Editora da UnB, Brasília, 2007 (em coautoria com Olavo da Silva Filho), pág. 15.
  • Denominamos “divergentes” (…) a todos os sistemas de LM do século passado que contestam algum aspecto da LM “clássica” (daí seu apropriado nome de “não clássicas”) (...) Pelo contrário, nós denominamos aqui como “hiperdivergentes” aqueles projetos lógicos que apresentam a lógica de uma maneira incompatível, ou muito dificilmente assimilável, com sua apresentação em sistemas de lógica, de tal forma que fica difícil, ou talvez impossível, definir essa lógica em relação aos sistemas da LM clássica e, consequentemente, sua própria divergência como sendo mesmo uma divergência. Historicamente, projetos lógicos como os apresentados por Hegel, Husserl e Dewey, por exemplo, são dessa natureza. Inferências lexicais e Interpretação de redes de predicados.
    • Editora da UnB, Brasília, 2007 (em coautoria com Olavo da Silva Filho), pág. 272.
  • Talvez as conexões lexicais descansem, em última instância, na vontade de viver, na vontade de poder, na dor, na mortalidade ou na sexualidade, e não em puras estruturas lógicas. Se ainda nossas lógicas lexicais fossem consideradas como atreladas ao “disposicional” e à tecnologia do pensamento (numa linha crítica hegeliano-heideggeriana) nada haveria a fazer; aí sim, pareceria que saímos dos limites de tudo o que poderia chamar-se ainda de “lógica” (...). Para um heideggeriano convicto, pouco se terá ganhado com a passagem da lógica usual para [a lógica lexical]. Não obstante isso, sentimos que existe uma sensibilidade intermediária a ser aproveitada e cultivada, que estaria entre as rígidas formas lógicas analíticas e o existencialismo “continental” selvagem, uma espécie de sensibilidade existencial das formas lógicas. Inferências lexicais e Interpretação de redes de predicados.
    • Editora da UnB, Brasília, 2007 (em coautoria com Olavo da Silva Filho), pág. 276- 277.

Cinema e filosofia[editar]

  • A atual filosofia profissionalizada tem se compreendido abertamente como “apática”, sem pathos, exclusivamente conduzida pelo intelecto e deixando de lado emoções e impactos sentimentais. Apenas uns poucos filósofos dos últimos dois séculos (Schopenhauer, Nietzsche, Freud, Kierkegaard, Heidegger) opuseram resistência a esta tradição, questionando a hegemonia da razão intelectualista e a sistemática exclusão da componente emocional na tarefa de captação do mundo. Neste sentido, podemos chamar de “cinematográficos” esses pensadores da tradição europeia.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 9.
  • Não será que muito do que Heidegger, por exemplo, tenta dizer, quase sem sucesso, forçando a língua alemã, obrigando-a a gerar frases dificilmente inteligíveis, ou as tentativas de Hegel de pensar o trabalho do conceito “temporalmente”, pondo-o “em movimento”, não seria muito melhor exposto através das imagens surgidas a partir do deslocamento calmo e atento de uma câmera cinematográfica?
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 19.
  • O cinema não elimina a exigência de verdade e universalidade, mas (...) as redefine dentro do fenômeno logopático (...) a universalidade do cinema é peculiar, pertence mais à ordem da possibilidade do que ao da necessidade. O cinema é universal, não no sentido do “acontece necessariamente a todos”, mas no sentido do “poderia acontecer com qualquer um”.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 25.
  • (…) Um bom filme é precisamente aquele no qual a câmera desaparece, quando não somos mais conscientes de estarmos vendo um filme, enquanto que um filme de vanguarda tenta voltar a câmera para si mesma e mostrar o aparato oculto. Uma maneira jocosa de entender isto seria comparar a reação de um humano e a de um gato quando apontamos para algum objeto com o dedo; enquanto o humano olha para além do dedo tentando descobrir o objeto para o qual o dedo aponta, o gato fica olhando para o dedo; nesse sentido, o gato é vanguardista, se interessa mais pelo médium (o dedo, a câmera) do que pelo objeto apontado.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 30- 31.
  • (…) a imagem cinematográfica não pode mostrar sem questionar, sem desestruturar, recolocar, retorcer, deturpar. O cinema não consegue ser esse puro “registro do real” que a concepção fotográfica do cinema costuma formular (e que correntes como o neorrealismo italiano tentaram aproveitar).
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 43.
  • Exercendo esse efeito de choque, de violência visual, de assalto à sensibilidade, de agressividade no mostrar, é possível que o espectador adquira aguda consciência de um problema moral ou epistemológico como talvez não lhe aconteça lendo um tratado sobre o assunto. Esta “sensibilização de conceitos” pode, inclusive, questionar algumas das soluções tradicionais de questões filosóficas oferecidas pelo conceito escrito ao longo da história da filosofia (...)
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 47.
  • Os filmes não “têm” um sentido que tenha que ser interpretado, mas eles estabelecem com o espectador uma inter-relação da qual surge um sentido não previsto, que não estava em nenhum lugar aguardando por ser encontrado.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 54.
  • Blow-up [Antonioni] mostra o que Descartes afirma: os sentidos nos enganam. Porém, não há nas imagens deste filme qualquer cogito que ajude a superar o insuportável estado de dúvida provocado pela ambiguidade dos fatos. Thomas [o jovem fotógrafo desse filme] não consegue se proteger em nenhuma subjetividade aconchegante; pelo contrário, é a sua subjetividade o que é roubado pela força misteriosa das coisas.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 171.
  • O pessimismo parece ter uma densidade existencial que o otimismo – mesmo o otimismo não ingênuo – não possui. Na famosa Último tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, o desconhecido (Marlon Brando) cuja mulher acabou de se suicidar, deambula por Paris e encontra casualmente Jeanne (Maria Schneider), com quem tem uma relação rica e violenta, física e existencial, num apartamento sem mobília, onde não importam as convenções nem o nome de coisas ou pessoas (...) Mas no momento em que ele consegue sair da fossa e voltar a se integrar na vida, se vestir bem e retomar o exercício das convenções habituais, saber o nome dela, casar-se e ser feliz, transforma-se numa caricatura convencional e sua relação com Jeanne acaba abruptamente (...).
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 294.
  • Um filme “quieto” no qual “não acontece nada”, onde se mostram pessoas olhando pelas janelas, andando pelas ruas, vivendo situações completamente banais, ou simplesmente olhando umas para as outras sem dizer nada, não satisfaz ao espectador ávido de novidades (...) esse tipo de espectador costuma dizer, depois de assistir um filme ontológico, que não gostou porque nele “não acontece nada”: precisamente o tipo de atitude que Heidegger pretende provocar em seus escritos, fazendo com que a ausência de entes prementes nos coloque em contato com o ser.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 366.
  • (…) Paradoxalmente, o cinema mudo inaugura o dizer, e o cinema sonoro o calar. O dizer não precisa de palavras, mas o calar sim. A falta de som não foi uma “limitação” para o cinema mudo, mas a falta de silêncio sim. E este não parece ser um limite de tipo estritamente wittgensteineano.
    • Cine: 100 años de Filosofía. Gedisa, Barcelona, 2015 (2ª edicão), pág. 426.
  • (...) uma concepção abstrata do cinema se opõe a uma concepção fotográfica, marcada pela tecnologia; por isso não gosto quando se fala da fotografia como precursora ou pioneira do cinema; a fotografia está aparentada com o cinema só mecanicamente; a antecessora poética do cinema, sua pioneira pensante, é muito mais a literatura que a fotografia; não há nada de intrinsecamente fotográfico no cinema, o cinema é tão abstrato como a literatura, e tão opaco; e tampouco a fotografia é concreta; nada humano é concreto, ou transparente, todo humano é predicativo, mostra-ocultando, inclui excluindo, entende-ignorando, pensa-dispensando (...)
    • Diálogo-Cinema. Edições SENAC, São Paulo, 2013 (en colaboración com Márcia Tiburi), pág. 94.

Filosofia latino-americana[editar]

  • Não tento aqui definir a Filosofia, mas, pelo contrário, despojá-la de toda definição fixa, deixá-la o mais livre possível para ela mesma achar suas definições mais cabíveis, provisórias, celebradas ou desabonadas. Assim como quero vê-la livre de qualquer obrigação “crítica”, “teórica” ou “profunda”, gostaria de vivê-la sem o estigma do afirmativismo edificante que a tem perseguido ao longo dos árduos tempos, como uma luta contra a retórica, o relativismo, o ceticismo, o pessimismo e o niilismo. Creio que a Filosofia não tem o dever de buscar a edificação conceituai, a salvação pelas idéias, ou a construção de uma sociedade justa. Quanto menos “tarefas” ela tiver, melhor. Não descarto a possibilidade de a sofistica, a retórica, o relativismo, o ceticismo, o pessimismo ou o niilismo serem poderosas formas de pensamento. Não é a minha tarefa como filósofo “vencer o ceticismo”, “superar o relativismo”, “ir além do niilismo”, ou “não se deixar abater pelo pessimismo”, mas ponderar se o ceticismo, relativismo, niilismo ou o pessimismo podem desenvolver-se como legítimas possibilidades do pensamento. Se o ceticismo for correto, deveremos ser céticos. Se o relativismo vê aspectos importantes do real, deveremos ser relativistas. Se a nossa reflexão nos leva a ver o mundo como nada, deveremos ser niilistas e pessimistas. Um filósofo não tem apostolados nem missões nem a obrigação de se engajar em cruzadas. Não tenho, pois, nesse sentido, qualquer concepção afirmativa do filosofar. A atividade filosófica é, para mim, impiedosa, incisiva e sem perdão e vai até onde as suas categorias a conduzam. Uma Filosofia poderá abalar os valores que sustentam a nossa sociedade, ou poderá, inclusive, destruir seu próprio sustentador. É uma tarefa perigosa, cujos desfechos não podem ser previstos.
  • Na verdade, a Europa não espera nada de nós, simplesmente não existimos para ela. Mas isso não é o pior, senão que esta indiferença pelo que pensamos desde a América Latina foi internalizada pelos próprios estudiosos latino-americanos de filosofia. Hoje em dia, a Europa não precisa perder seu tempo rejeitando-nos, porque ela já tem representantes internos que desempenham a contento esse papel excludente.
  • Quando um europeu filosofa todos seus problemas são de essência, não há nenhuma dúvida acerca do existir de seu pensamento. Quando um latino-americano se põe a filosofar (e isto se poderia ampliar, por exemplo, para africanos e outros pensamentos marginalizados) ele tem que provar que seu filosofar existe, que ele tem direito a refletir. (...) Chamo a isto uma exigência de “insurgência” do filosofar latino-americano: para vir a ser, o filosofar desde América Latina tem que se insurgir contra a exclusão intelectual (...) não estritamente porque “queira” insurgir-se, mas porque não o deixam “surgir” de outra forma (...) O filosofar desde América Latina é reativo e insurgente ou não é; trata-se de uma imperiosa necessidade de sobrevivência.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág. 13.
  • O desamparo fica como oculto ou camuflado embaixo das formas profissionalizadas do filosofar, tanto na filosofia analítica quanto nos estudos dos “especialistas em Nietzsche”. A fragilidade intrínseca a todo filosofar (a todo viver) fica como disfarçada numa maneira aparentemente firme, segura e técnica de “dominar os assuntos” e construir argumentos. Mas nem mesmo ali o filosofar consegue esconder seu desamparo original.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág. 22.
  • Não tento aqui definir a filosofia, mas, pelo contrário, despojá-la de toda definição fixa, deixá-la o mais livre possível para ela mesma achar suas definições mais cabíveis, provisórias (...). Assim como quero vê-la livre de qualquer obrigação “crítica”, “teórica” ou “profunda”, gostaria de vivê-la sem o estigma do afirmativismo edificante que tem a perseguido ao longo dos árduos tempos, como uma luta contra a retórica, o relativismo, o ceticismo, o pessimismo e o niilismo. Creio que a filosofia não tem o dever de buscar a edificação conceitual, a salvação pelas ideias, ou a construção de uma sociedade justa. Enquanto menos “tarefas” ela tiver, melhor.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág. 25.
  • (...) a “filosofia institucional” transformou a atividade filosófica numa série de movimentos automáticos e sem vida; num enorme aparato onde professores e estudantes aparecem submetidos a rotinas estáticas e desprovidas de sentido. (...) muitas vezes os estudantes escrevem seus trabalhos bem longe do que realmente gostariam de fazer, trabalhos que serão lidos distraidamente (e depois arquivados em volumosos bancos de teses que ninguém consulta) por professores cada vez mais ocupados com tarefas administrativas e políticas, e que oferecem, também distraidamente, as aulas que seus alunos escutarão por obrigação.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág. 80.
  • Nas universidades, não se espera que ninguém desenvolva uma filosofia, e se alguém tentasse fazê-lo seria mal avaliado, e considerado irresponsável. (...) Não existe nenhuma censura explícita contra isso, ou seja, ninguém que proíba fazer trabalhos mais pessoais ou ensaios sobre autores nacionais, mas alguém que ousasse fazer isso seria ouvido por poucos, ou, pior ainda, assistido com distanciada ironia, e o autor considerado um diletante ou um “filósofo frouxo”. A própria “comunidade” exerce aqui o papel da censura, dispensando-a como mecanismo autoritário externo. O autoritarismo se incorporou na comunidade.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág. 81-82
  • No paradigma ainda dominante, parece que a possibilidade de ser um “grande filósofo” está ab initio descartada. Assim, a alternativa real pareceria ser, se aceito este paradigma: preferes ser um grande comentador de filosofia ou um pequeno filósofo? Um genuíno filósofo nunca pensa prevendo que fará grande ou pequena filosofia; pois ele simplesmente pensa, compulsivamente, suas próprias “coisas”, seus pontos, suas obsessões, e não pode fazer outra coisa a não ser pensá-las. (...) O que haverá que avaliar é se, na pior das hipóteses, ser um pequeno filósofo é ou não mais importante do que se transformar num brilhante comentador ou num grande especialista em alguém.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág.87.
  • Poder-se-iam formular claramente pelo menos duas maneiras diferentes de receber o legado europeu: (1) Continuar a expor e difundir o pensamento gerado na Europa; ou: (2) Tentar receber esse legado no sentido de assumir a mesma atitude criativa que os europeus assumiram para construir, valorizar e difundir a sua própria filosofia. Na opção (1), Europa nos lega um objeto de estudo; na alternativa (2), Europa nos lega uma atitude. Assumindo a primeira alternativa, reapresentamos os conteúdos da filosofia europeia; assumindo a segunda, tentamos fazer filosofia como os europeus fizeram a deles.
    • Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, Ijuí, 2013 (2ª edicão), pág. 219-220.
  • Uma das questões mais curiosas que me dizem nas discussões sobre filosofia no Brasil, é que a minha abordagem é “marcadamente política”, como se fosse eu quem está introduzindo a política no corpo asséptico e incontaminado da “filosofia pura” (...) Eu quero dizer desde o início que as ideias de que a filosofia europeia é filosofia universal, e de que os pensamentos nascidos em América Latina ou África são nacionais, são políticas de ponta a ponta; fazem parte de uma política que, ao ter sido instaurada e vigorar de maneira hegemônica, esconde seus próprios traços ideológicos se apresentando como se fosse tão somente a verdade absoluta e objetiva.
    • Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional. Revista Nabuco, Ano 1, número 2, dezembro de 2014-janeiro de 2015, pág. 15.
  • Pode-se aceitar que os pensamentos filosóficos sejam universais no sentido de ser de interesse para seres humanos de qualquer ponto do planeta (...) Entretanto, se não quisermos formular essa universalidade em termos metafísicos ou transcendentais, teremos que concebê-la como o resultado de um processo histórico, com uma procedência, uma circunstância e uma perspectiva, o que não lesa a universalidade do pensado (...), mas a situa. O que se nega é a ideia de que os pensamentos filosóficos possam surgir de maneira direta da razão humana, de uma visão de lugar nenhum. A universalidade dos pensamentos não os dispensa de ter uma origem (...)
    • Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional. Revista Nabuco, Ano 1, número 2, dezembro de 2014-janeiro de 2015, pág. 18.
  • O local de nascimento como centro organizador faz parte das circunstâncias pensantes, mas não as esgota. O “desde Brasil” não é apenas uma referência nacional, mas uma circunstância existencial-histórica, vinculada com a particular configuração do mundo que fazemos quando o vemos desde América do Sul e não desde a Etiópia ou o Canadá. Nomes como “Brasil”, “Israel” ou “Paris” não aludem, pois, a nações, mas a perspectivas de organização do mundo. Embora faça algum sentido declarar que, num mundo globalizado, a ideia restrita de nação se dilui, pode ser falacioso dizer que a globalização suprime perspectivas e circunstâncias a partir das quais essa globalização vai ser vivida e pensada.
    • Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional. Revista Nabuco, Ano 1, número 2, dezembro de 2014-janeiro de 2015, pág. 33.
  • Os estudantes são ensinados a fazer filosofia somente de uma maneira, num único estilo e apoiados numa única tradição, estudando pensamentos apenas de quatro ou cinco países do planeta. Os problemas e autores latino- americanos (...) parecem relevantes para o futuro dos jovens estudantes de filosofia, colocando-lhes questões críticas em lugar de simplesmente inseri-los como trabalhadores e consumidores de filosofia dentro de um sistema pretensamente objetivo. Em lugar de decidir pelo aluno de maneira paternalista, deveríamos encontrar um espaço de informações e discussões onde todas as maneiras de fazer filosofia fossem apresentadas, discutidas e eventualmente excluídas, pois mesmo para excluir filosofias é preciso que elas apareçam.
    • Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional. Revista Nabuco, Ano 1, número 2, dezembro de 2014-janeiro de 2015, pág. 46.

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Ligações externas[editar]

Referências