Jessé Souza

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Jessé José Freire de Souza. Natal-RN, 29 de março de 1960 é um sociólogo, advogado, professor universitário, escritor e pesquisador brasileiro que atua nas áreas de Teoria Social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos sobre desigualdade e classes sociais no Brasil contemporâneo.



Citações[editar]

A ELITE DO ATRASO, 2019[editar]

A elite do atraso, Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. ISBN 9788556080424

  • A construção de uma elite todo-poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que não vejamos a elite real, que está fora do Estado, ainda que sua captura seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos imbeciliza, já que desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse esquema, se fizermos uma analogia com o narcotráfico, os políticos são os "aviõezinhos" do esquema e ficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito de uma meia dúzia. p. 13
  • Combater a corrupção de verdade seria combater a rapina, pela elite do dinheiro, da riqueza social e da capacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadores financeiros. p. 13
  • Ao substituir a raça pelo estoque cultural, cria-se uma impressão de cientificidade, reproduzindo-se os piores preconceitos. p. 19
  • O culturalismo, cientificamente falso como é, cumpre, assim, exatamente as mesmas funções do racismo científico da cor da pele. Presta-se a garantir uma sensação de superioridade e de distinção para os povos e países que estão em situação de domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação. p. 19
  • Hoje em dia, na Europa e nos Estados Unidos, absolutamente ninguém deixa de se achar superior aos latino-americanos e africanos. Entre os melhores americanos e europeus, ou seja, aqueles que não são conscientemente racistas, nota-se o esforço politicamente correto de se tratar um africano ou um latino-americano como se este fosse efetivamente igual. Ora, o mero esforço já mostra a eficácia do preconceito que divide o mundo entre pessoas de maior e de menor valor. p. 20
  • Um brasileiro de classe média que não seja abertamente racista também se sente, em relação às camadas populares do próprio país, como um alemão ou um americano se sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se fossem gente igual a ele. p. 21
  • Em razão tanto da legitimidade e do prestígio da ciência quanto do poder de repetição e convencimento midiático, as pessoas passam a pensar o mundo de tal modo que favorece a reprodução de todos os seus privilégios. p. 21
  • A colonização da elite brasileira mais mesquinha sobre toda a população só foi e ainda é possível pelo uso, contra a própria população indefesa, de um racismo travestido em culturalismo que possibilita a legitimação de todo ataque contra qualquer governo popular. p. 25
  • Buarque, ao localizar a "elite maldita" no Estado, torna literalmente invisível a verdadeira elite da rapina que se encontra no mercado. Um mercado capturado por oligopólios e atravessadores financeiros. p. 34
  • A leitura de Sérgio Buarque foi ensinada nas escolas e nas universidades de todo o país - como acontece até hoje - e tornou possível fazer do mote da corrupção apenas do Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite à elite mais mesquinha fazer todo um povo de tolo. p. 34
  • Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. p. 42
  • O ódio ao pobre hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes. p. 70
  • É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno. p. 71
  • Ser considerado branco era ser considerado útil ao esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma de se "embranquecer", inexistente em outros sistemas com outras características. p. 74
  • Embranquecer significava, numa sociedade que se europeizava, compartilhar os valores dominantes dessa cultura, ser um suporte dela. p. 74
  • Como todo processo de escravidão pressupõe a animalização e humilhação do escravo e a destruição progressiva de sua humanidade, como a negação do direito ao reconhecimento e à autoestima, da possibilidade de ter família, de interesses próprios e de planejar a própria vida, libertá-lo sem ajuda equivale a uma condenação eterna. p. 79
  • O ex-escravo é jogado dentro de uma ordem social competitiva, como diz Florestan, que ele não conhecia e para a qual não havia sido preparado. p. 80
  • A inclusão social de setores antes estigmatizados e marginalizados é sempre um "aprendizado político" coletivo e jamais decorrência natural do dinamismo econômico do mercado. p. 85
  • A teoria da modernização sofisticou a moda de eufemizar a realidade para negar formas de dominação que tendem a se eternizar. p. 85
  • É o desconhecimento da hierarquia moral, especificamente capitalista, e não mais escravocrata, que produz de modo novo tanto a distinção que legitima as novas formas de privilégio quanto o preconceito que marginaliza e oprime em violência aberta ou muda. p. 86
  • ... a escravidão exige a tortura física e psíquica cotidiana como único meio de dobrar resistência do escravo para fazê-lo abdicar da própria vontade, as elites que comandaram esse processo foram as mesmas que abandonaram os seres humilhados, sem autoestima e autoconfiança e os deixaram à própria sorte. Depois, como se não tivessem nada a ver com esse genocídio de classe, buscaram imigrantes com um passado e um ponto de partida muito diferente para contraporem o mérito de um e de outro, aprofundando ainda mais a humilhação e a injustiça. Esse esquema funciona até os dias de hoje sem qualquer diferença. Esse abandono e essa injustiça flagrante são o real câncer brasileiro e a causa de todos os reais problemas nacionais. p. 89
  • ... o problema central do país deixa de ser a corrupção supostamente herdada de Portugal, para se localizar no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas. p. 90
  • As contradições e os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações de dominação entre classes sociais, desde que não utilizemos o mote da corrupção para esconder a verdade nem reduzamos as classes à mera dimensão econômica. p. 90
  • A ideia de classe social é mal conhecida por boas razões. Primeiro porque ela, acima de qualquer outra, nos dá a chave para compreender tudo aquilo que é cuidadosamente posto embaixo do tapete pelas pseudociências e pela imprensa enviesada. p. 91
  • Sem ideia de classe e o desvelamento das injustiças que produz desde o berço, temos a legitimação perfeita para o engodo da meritocracia individual do indivíduo competitivo. p. 91
  • As classes sociais só podem ser adequadamente percebidas, portanto, como um fenômeno, antes de tudo, sociocultural, e não apenas econômico. p. 94
  • Como ninguém escolhe o berço em que nasce, é a sociedade que deve se responsabilizar pelas classes que foram esquecidas e abandonadas. p. 95
  • Não se trata apenas de acesso à boa escola - o que nunca existiu para as classes populares. Trata-se de criticar a nossa herança escravocrata, que agora é usada para oprimir todas as classes populares independentemente da cor da pele, ainda que a cor da pele negra implique uma maldade adicional. p. 95
  • O privilégio de uns e a carência de outros são decididos desde o berço. p. 96
  • É o monopólio dos capitais que irá fazer com que uma classe social possa reproduzir seus privilégios de modo permanente. p. 97
  • É um privilégio muito visível o fato de a classe média possuir capital econômico suficiente para comprar o tempo livre de seus filhos só para o estudo. p. 102
  • Os filhos das classes populares precisam conciliar estudo e trabalho desde a primeira adolescência, geralmente a partir de 11 ou 12 anos. p. 102
  • A criança de classe média, afinal, chega na escola conseguindo se concentrar porque já havia recebido estímulos para direcionar sua atenção ao estudo e à leitura antes, por incentivo familiar. p. 103
  • Como os estímulos à leitura e à imaginação são menores, os pobres possuem quase sempre enormes dificuldades de se concentrar na escola. p. 104
  • A capacidade de concentração não é, portanto, um dado natural, como ter dois ouvidos e uma boca, mas uma habilidade e disposição para o comportamento aprendida apenas quando adequadamente estimulada. p. 104
  • Se na elite dos endinheirados o capital econômico tem que parecer inato e, portanto, merecido, na classe média, a aquisição de conhecimento valorizado e das predisposições que permitem sua incorporação pelo sujeito tem que parecer também inata, sendo, portando, também percebida como merecida e justa. p. 105
  • Sem autoestima e autoconfiança, não se pode passar para os filhos os incentivos que a classe média possui e reproduz desde o berço. p. 106
  • O dinheiro quer se reproduzir sempre aumentando sua quantidade, o que significa, quase sempre, que outros estão perdendo nessa conta. p. 122
  • O dinheiro, na forma da acumulação de capital, precisa ser legitimado politicamente e moralmente para conseguir sua reprodução ampliada ad infinitum. p. 122
  • No Brasil, a classe média sempre foi, desde meados do século passado, a tropa de choque dos ricos e endinheirados. p. 123
  • ... é na esfera pública que a classe média é colonizada pelos interesses do dinheiro. O domínio da elite sobre ela é simbólico e pressupõe convencimento. p. 123
  • O que é público, de interesse geral e para o bem de todos, precisa, a partir de agora, provar-se argumentativamente enquanto tal. p. 125
  • A esfera pública burguesa que se constitui aqui deve ser entendida, antes de tudo, como a reunião de pessoas privadas num ambiente público. p. 126
  • A pequena família burguesa representa uma forma de comunidade familiar distinta tanto da família aristocrática quanto da família camponesa. p. 127
  • O que é dito por Habermas a partir de sua análise da esfera pública é que, além do poder, do dinheiro e das formas de violência física e simbólica, as quais continuam decisivas em qualquer caso concreto, o exercício do poder político deve, também, se legitimar discursivamente. p. 128
  • Tanto o direito à igualdade dos trabalhadores quanto o direito à igualdade das mulheres forma conquistados, também, não apenas pela violência, mas por processos de convencimento na esfera pública que lograram penetrar e convencer partes significativas da sociedade. p. 129
  • As massas menos letradas do proletariado emergente que passam a pressionar pela efetivação de seus interesses de classe quebram por dentro a unidade da esfera pública burguesa. p. 129
  • ... populismo como mecanismo de deslegitimação dos interesses populares, sob a forma de uma reação liberal à entrada das massas trabalhadoras na política ... p. 130
  • Como os interesses das massas são diferentes, a forma de deslegitimá-los é negar-lhe a racionalidade. Foi o que nosso liberalismo fez e faz o tempo todo entre nós. p. 130
  • ... a manipulação da grande imprensa entre nós não pode se assumir enquanto tal. Ela tem que fazer de conta que é plural e argumentativa. Essa é sua legitimação explícita. p. 132
  • Os telejornais e programas de debate da TV Globo e outros canais com pessoas que refletem a mesma opinião criam uma fraude evidente. A semelhança de opiniões visa criar, em um público sem padrão de comparação, um arremedo de debate. p. 135
  • Só a pluralidade de informações e de opiniões assegura aproximações sucessivas à verdade. p. 135
  • A esfera pública tem que ser produzida e maquiada artificialmente porque ela não mais existe. p. 136
  • A elite do atraso construiu a esfera midiática adequada a seus fins. p. 136
  • O moralismo da nascente classe média urbana seria a melhor maneira de adaptar o mandonismo privado das elites aos novos tempos. p. 139
  • O que estava em jogo aqui era a captura, agora intelectual e simbólica, da classe média e de suas frações letrada pela elite do dinheiro, formando a aliança de classe dominante que marcaria o Brasil daí em diante. p. 140
  • A USP, a Universidade do Estado de São Paulo, foi criada por essa mesma elite desbancada do poder político e pensada como a base simbólica, uma espécie de think tank gigantesco, do liberalismo elitista brasileiro a partir de então. p. 140
  • ... as classes sociais estão sempre disputando não apenas bens materiais e salários, mas, também, prestígio e reconhecimento - ou melhor: legitimação do próprio comportamento e da própria vida. p. 141
  • As classes superiores, que monopolizam capital econômico e cultural, têm que justificar, portanto, seus privilégios. p. 141
  • A suposta superioridade moral da classe média dá à sua clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representar o melhor da sociedade. p. 142
  • A elite do dinheiro soube muito bem aproveitar as necessidades de justificação e de autojustificação dos setores médios. Comprou uma inteligência para formular uma teoria liberal moralista feita com precisão de alfaiate para as necessidades do público que queria arregimentar e controlar. p. 142
  • Como o dinheiro não pode "aparecer" comprando diretamente os valores que guiam as esferas da cultura, do conhecimento e da informação, essas esferas precisam construir mecanismos de consagração internos a elas que pareçam ser infensos à autoridade do dinheiro e do poder. p. 143
  • Todo discurso elitista e conservador do liberalismo brasileiro está contido em duas noções que foram desenvolvidas na USP e depois ganharam o Brasil: as ideias de patrimonialismo e de populismo. p. 143
  • Juntas, a demonização da política e do Estado e a estigmatização das classes populares constituem o alfa e o ômega do conservadorismo da sociedade brasileira, cevado midiaticamente todos os dias desde então. p. 144
  • A noção de patrimonialismo é falsa por duas razões: primeiro as elites que privatizam o público não estão apenas, nem principalmente, no Estado, e o real assalto ao Estado é feito por agentes que estão fora dele, sobretudo no mercado. p. 144
  • Na verdade, o Estado é privatizado em todo lugar, e a noção de patrimonialismo apenas esconde mais esse fato fundamental, possibilitando uma dupla invisibilização: dos interesses privados que realmente dominam o Estado e do rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas os estrangeiros, mas os interesses estrangeiros, como superiores e produto de uma moralidade superior. p. 145
  • A noção de populismo, atrelada a qualquer política de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de qualquer sociedade democrática. p. 147
  • ... as classes populares desconfiam, com razão, de uma política que percebem como "jogo de ricos" e adotam a postura pragmática de esperar para ver o que sobra para elas. Para mim, confesso, esse racionalismo prático das classes populares parece bem mais sensato e inteligente do que a postura das classe média ressentida e insegura, vítima fácil de qualquer moralismo que a faça se sentir melhor do que ela é. p. 147
  • As teses do populismo e do patrimonialismo caem, precisamente, como uma luva para os interesses dessa elite. p. 148
  • O patrimonialismo aponta o dedo acusador apenas às elites aparentes, ligadas ao Estado, mas que no fundo só fazem o trabalho sujo da verdadeira elite do dinheiro, que manda no mercado e permanece invisível. p. 148
  • "Moralidade" significa, aqui, unicamente se indignar com as falcatruas - sempre seletivas e cuidadosamente selecionadas pela imprensa - do sistema político, de resto montado para ser corrupto, já que montado para ser comprado pela elite do dinheiro. Assim, a classe média pode ganhar sua "boa consciência", mesmo humilhando e explorando os mais frágeis, se escandalizando apenas com a suposta imoralidade estatal. p. 149
  • ... a elite do dinheiro e seus comandados na vida intelectual e na imprensa passam a possuir o coração e a mente da classe média e podem recorrer a esse capital na luta política sempre que necessário. p. 150
  • Todo o esquema que operou no recente "golpeachment" de 2016 já estava armado desde o segundo governo Vargas. p. 150
  • ... sempre que a regra democrática ferir o mandonismo e o privatismo da elite do dinheiro, o dispositivo pode ser ativado, permitindo a captura da classe média moralista e a estigmatização das classes populares e suas demandas. p. 151
  • ... a classe média é o capataz da elite do dinheiro, cuja tarefa é subjugar o restante da sociedade como um todo. p. 156
  • Todas as classes do privilégio tendem, necessariamente, a ver seu privilégio como inato ou merecido. p. 156
  • A elite do dinheiro tende a perceber seu privilégio como decorrente de uma superioridade inata. p. 157
  • Na classe média, não só se transmitem os estímulos privilegiados dos pais aos filhos - como capacidade de concentração e pensamento prospectivo -, como também se compra o tempo livre dos filhos só para os estudos. p. 157
  • Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares que tornou impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia. p. 160
  • O que precisa ser compreendido de uma vez por todas é que ser "gente", ser considerado "ser humano", não é um dado natural, mas, sim, uma construção social. p. 162
  • A grande imprensa é uma grande empresa que se disfarça, mentindo para seus leitores e telespectadores, e "tira onda" de serviço público. p. 164
  • O partido verdadeiramente nacional da elite endinheirada é a grande imprensa. p. 164
  • As novas empresas da lean production no Ocidente preferem contratar mão de obra jovem, sem passado sindical, com cláusulas explícitas de quebra de contrato em caso de greve: em sua, o novo trabalhador deve ser desenraizado, sem identidade de classe e sem vínculos de pertencimento à sociedade maior. p. 171
  • Os novos capitalistas financeiros passam a ter, comparativamente, um poder muito maior de chantagear a política e o Estado. p. 172
  • O Estado precisa se financiar com o resultado do trabalho coletivo. p. 172
  • Como os ricos que ficam cada vez mais ricos deixam de pagar impostos por métodos "legais" e ilegais, o Estado tem agora que pedir emprestado o que lhe era devido por direito. p. 173
  • Os ricos não só não pagam o que deveriam, como ficam ainda mais ricos porque cobram uma sobretaxa, que é a maior do mundo no caso brasileiro, pelo dinheiro que emprestam e que deveriam ter pago como imposto. 173
  • É desse modo, pelo mecanismo absurdo de uma dívida assumida pela sociedade como um todo a uma classe de sonegadores, que se explica a captura do Estado e da política pelo capital financeiro. p. 174
  • Toda crise fiscal, inclusive a brasileira é, portanto, uma crise de receita, e não de despesa como a imprensa venal e comprada - devedora dos bancos que são também o seus principais anunciantes - alardeia. p. 174
  • O grande esquema de corrupção sistêmica que o capitalismo financeiro impõe, que implica superexplorar e enganar as classes sociais abaixo da elite, capturar o Estado e a política para seus fins, e instaurar uma imprensa e uma esfera pública que implicam distorção sistemática da realidade, é naturalizado e percebido como dado imutável. p. 175
  • A imprensa manipulativa não cria o mundo. Ela não é tão poderosa. Ela manipula preconceitos já existentes de modo a retirar deles a maior vantagem possível, tanto material quanto simbólica, para a elite do dinheiro que a sustenta com anúncios e falcatruas diversas. p. 175
  • A classe média brasileira possui um ódio e um desprezo pelo povo cevados secularmente. Essa é talvez nossa maior herança intocada da escravidão, nunca verdadeiramente compreendida e criticada entre nós. p. 179
  • Para que se possa odiar o pobre e o humilhado, tem-se que construí-lo como culpado de sua própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e ameaçador. p. 179
  • O Brasil tem mais assassinatos - de pobres - que qualquer outro país do mundo. São 70 mil pobres assassinados por ano no Brasil. Existe uma guerra de classes hoje declarada e aberta. p. 180
  • O Brasil não simplesmente abandonou os escravos e seus descendentes à miséria. Os brasileiros das classes superiores cevaram a miséria e a construíram ativamente. p. 180
  • O moralismo estreito para inglês ver e o ódio secular às classes populares parece-me a mais brasileira de todas as nossas singularidades sociais. p. 181
  • Como nunca criticamos a escravidão, e como sempre, inclusive, tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, suas práticas continuada com máscaras modernas também não são percebidas como continuidade. p. 182
  • Em um país onde tantos levam uma vida miserável e indigna deste nome, a superação da miséria de tantos é a luta primeira e mais importante. As lutas pela preservação da natureza e das liberdades das minorias, importantes como são, devem ser acopladas a esse fio condutor que implica superação de todas as injustiças. p. 185
  • Para um sueco que efetivamente resolveu os problemas centrais de injustiça social e distribuição de riquezas, não é estranho que se dedique à preservação de espécies raras e faça dessa luta sua atuação política principal. Que um brasileiro faça o mesmo e se esqueça da sorte de tantos seres humanos tão perto dele é apenas compreensível se ele os torna invisíveis. p. 185
  • O protofascista se orgulha de não ser falso como os outros e poder dizer o que lhe vem à mente. O mal e o bem estão claramente definidos, e o bem se confunde com a própria personalidade. p. 189
  • Como nunca aprendeu a se criticar, o protofascista tem uma sensibilidade à flor da pele e qualquer crítica aciona uma reação potencialmente violenta. p. 189
  • Toda a manipulação política desses setores é marcada pelo prestígio da noção de patrimonialismo e, por consequência, da corrupção apenas da política, e nunca do mercado. p. 192
  • Mas todos os outros não apenas estão soltos, como também, como Joesley Batista, culpam a política, como se tivessem sido forçados a agir como agiram, e não o contrário. Como é possível tamanha desfaçatez na inversão da captura da política pelo mercado? p. 192
  • A ideia de patrimonialismo é ainda mais fundamental, já que eivada de prestígio acadêmico e repetia por todos os intelectuais orgânicos dessas frações. A grande imprensa, depois, envenena seus leitores distribuindo a distorção sistemática da realidade que essa leitura implica, por assim dizer, em pílulas todos os dias. p. 193
  • Os "camisas amarelas", explorados como todas as outras classes e setores sociais por essa mesma elite, dispõem-se a defender seus interesses econômicos devidamente travestidos em princípios morais precisamente para dirigir seu ódio de classe a qualquer liderança popular. p. 195
  • A operação Lava Jato foi, desde o começo, uma caça aos petistas e a seu líder maior como forma de garantir e assegurar a distância social em relação aos pobres que não os torne tão ameaçadores como eles haviam se tornado com Lula. p. 196
  • O maior perigo representado pelos pobres foi quando eles começaram a poder entrar para universidade pública, reduto dos privilégios da classe média, pois durante a administração do PT o número de matriculados aumentou de 3 para 8 milhões. p. 196
  • O ódio encoberto aos pobres se torna maior que o amor superficial pela forma democrática. p. 198
  • A elite de proprietários pode manipular melhor o povo se ele não tem autoestima e já se vê como inferior moralmente e sem valor. p. 202
  • A lógica de funcionamento do mercado é tornada invisível e a noção de elite dominante, portanto, restringe-se à esfera estatal. p. 202
  • O patrimônio do rei no século XIV já era maior do que o do clero e três vezes maior do que o da nobreza. Note o leitor que isso não significa qualquer confusão entre público e privado, já que a própria noção de público é historicamente posterior. p. 206
  • ... é a-histórica a noção de poder total do rei como negativa, já que é ela que antecipa o Estado democrático moderno. p. 206
  • De modo a-histórico e conceitualmente frágil, como veremos em breve, Faoro equipara o caso português com o dos mandarins chineses, em uma sociedade muito diferente da portuguesa, inclusive em relação ao aspecto decisivo do desenvolvimento da economia monetária. p. 207
  • Mas as filigranas conceituais não são o objeto principal da atenção de Faoro, mais interessado em criar a imagem de um "estamento incrustado no Estado" - a tal "elite", como se ela estivesse até hoje no Estado, e não no mercado -, o qual se apropria do aparelho de Estado e usa o poder de Estado de modo a assegurar a perpetuação de seus privilégios. p. 207
  • Apesar da narrativa elegante e erudita, literalmente todos os pressupostos, tanto os históricos quanto os sociológicos, da análise de Faoro são falsos. p. 210
  • ... o Brasil não herda de Portugal sua estrutura social, mas sim da escravidão, que não existia em Portugal. p. 210
  • Não existe nenhum exemplo histórico de desenvolvimento de um mercado capitalista dinâmico sem que o Estado tenha sido o apoio e esteio principal. p. 211
  • ... tese do patrimonialismo. É essa tese superficial e sem qualquer fundamento conceitual sério que serve de contraponto para a pobreza do debate público político entre nós. p. 211
  • ... o patrimonialismo não é compatível com esferas sociais diferenciadas - nas palavras de Weber e como ele preferia se referir: "esferas da vida". p. 212
  • As esferas da vida diferenciadas, como economia, política e direito, por exemplo, implicam que cada qual possui um princípio valorativo ou critério regulador que lhe é próprio e que serve de padrão para a conduta dos sujeitos nessa esfera. p. 212
  • É só, por exemplo, quando a economia se liberta da religião, que impedia a prática da usura, ou seja, o empréstimo de dinheiro a juros, que a economia pode se desenvolver como esfera própria sem a intromissão de princípios e valores de outras esferas. p. 213
  • O direito autônomo nasce historicamente como garantia de procedimentos formais - esses que a Lava Jato aboliu para regredir o direito brasileiro em séculos - que são universais, precisamente para que a política, ou seja, o direito do mais forte, não seja a regra. p. 213
  • Portugal era um país pequeno e pouco populoso, e sua estratégia de delegar a particulares a colonização das novas terras era um imperativo de sobrevivência. p. 216
  • Como vimos, na Idade média não havia sequer a noção de soberania popular e, portanto, não existia sequer a ideia de "bem público" no sentido moderno. p. 217
  • A ideia de "propriedade pública" só existe em um contexto histórico que contempla também a ideia de que todo poder deriva do povo. E esta ideia só se consolida na Revolução Francesa, de 1789. Só a partir dessa época é que um particular pode ser "corrupto", no sentido moderno do termo, ao se apropriar privadamente de algo que pertence ao público. p. 217
  • O que dizer do empresariado brasileiro, que foi, no nosso caso, o principal beneficiário do processo de industrialização brasileiro financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte o estamento estatal? p. 218
  • Na verdade, a noção de patrimonialismo aplicada à realidade brasileira não vale um tostão furado. p. 218
  • Muitas de nossas características foram atribuídas à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, portanto, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma justiça específica, uma economia específica. p. 219
  • Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana. Isso é herança escravocrata, não portuguesa. p. 219
  • Daí decorre a noção absurda, mas tida como verdade acima de qualquer suspeita entre nós: a noção de que elite poderosa está no Estado, com isso invisibilizando a ação da elite real, que está no mercado, tanto nos oligopólios quanto na intermediação financeira. p. 220
  • A real função da noção de patrimonialismo é fazer o povo de tolo e manter a dominação mais tosca e abusiva de um mercado desregulado completamente invisível. p. 220
  • ... quem mais contribuiu para a crise atual, tanto a econômica quanto a política, assim como também para a própria crise entre os poderes, foi a própria Globo, juntamente com toda a grande mídia, que ela comanda ao construir a pauta da mídia como um todo. p. 221
  • Por que a grande mídia, e muito especialmente a Globo, continua tratando a corrupção como se ela estivesse em todas as instituições, menos nela? Até quando? p. 222
  • Emílio Odebrecht queria contar, afinal ele sabia que a Globo e as outras mídias estavam mantendo uma imagem imaculada em um esquema para lesar a sociedade, ficando apenas ele e sua empresa com a conta. p. 224
  • A formação do que chamei de pacto antipopular entre uma ínfima elite do dinheiro, que encara a sociedade como um todo como espólio para saque financeiro, e os setores mais conservadores da classe média deu-se pelo que chamamos de colonização da esfera pública pelo poder do dinheiro. p. 224
  • A crítica da imaturidade das classes populares sob a forma do populismo fecha o pacote do acordo transclassista que se une contra qualquer forma de ascensão popular verdadeira. p. 225
  • A Globo é a roupagem perfeita para um capitalismo selvagem e predatório que chama a si mesmo de emancipador e protetor dos fracos e oprimidos. p. 229
  • A glorificação do oprimido não ajuda em nada na melhoria do cotidiano cruel e opressivo dos pobres, mas emula a necessidade de legitimação da vida que se leva quando as possibilidades de mudanças efetivas estão interditadas. p. 229
  • A colonização da esfera pública assume não apenas a forma de rebaixamento de todos os conteúdos para ampliar o público consumidor; ela assume a forma da confusão proposital do interesse privado sempre apresentado como público. p. 230
  • Esse é certamente um caso único nas sociedades modernas: um grupo de mídia se intromete seletivamente na política, se alia a juízes com agenda própria e corporações com interesses particularistas, como o MP e a Polícia Federal, chantageia e ameaça juízes de tribunais superiores e políticos, usando a turba protofascista da classe média como massa de manobra, e consegue destronar um governo eleito democraticamente. p. 231
  • Na verdade, coube à Globo o papel principal, sendo acompanhada, no entanto, por toda a grande mídia, na construção do estado atual de deslegitimação crônica das instituições democráticas acusadas de práticas pelas quais a Globo deveria ter sido a primeira a pagar. p. 232
  • A soberania popular foi atacada constantemente desde 2013. p. 232
  • A soberania virtual coloniza o potencial legitimador da soberania popular ao dar a impressão de que a corrige em ato, com o povo nas ruas sob a máscara de uma democracia direta comandada pela Rede Globo, retificando o que foi feito nas urnas, supostamente sem saber o que estava fazendo. p. 233
  • Sem a fraude gigantesca da soberania virtual não se compreende o que se passou de 2013 a 2016 sob a batuta dessa fábrica de mentiras institucionalizada, hoje literalmente tão sem controle quanto as instituições e corporações do Estado, como o poder judiciário e o MP, que a Globo liderou nesse massivo ataque à jovem democracia brasileira. p. 233
  • Repare o leitor que jamais se reflete acerca de um sistema político construído para ser corrupto, ou seja, construído para ser comprado pela elite do atraso para manter seus privilégios econômicos. p. 234
  • O ataque midiático é feito para parecer que a corrupção é obra de pessoas privadas ou partidos específicos. p. 234
  • Depois, quando o ódio passa a grassar no país e figuras que representam o elogia à tortura e à violência mais grotesca, como Jair Bolsonaro e seu fascismo aberto, passam a representar ameaças reais à democracia e aos direitos humanos mais elementares, a Globo e grande mídia agem como se não tivessem nenhuma responsabilidade. p. 235
  • O resultado, que é o que importa na vida, é que cruzada contra a corrupção dos sócios da Globo, da grande mídia e da Lava Jato, que seria uma piada ridícula e digna de riso e escracho se não fosse trágica, feriu de morte nosso jovem experimento democrático e ainda criminalizou e estigmatizou a bandeira da igualdade social. p. 235
  • Distorcer sistematicamente a realidade social, mentir e fraudar uma população indefesa é, por conta disso, fazer um mal incomparavelmente maior que surrupiar qualquer quantia financeira. p. 236
  • O que se impede aqui é o processo histórico de aprendizado possível de todo um povo, que é abortado por uma empresa que age como um partido político inescrupuloso. p. 236
  • Não vamos ser ingênuos. O início da Lava Jato foi a perspectiva de se acabar com o sonho dos BRICS e dos brasileiros que aspiram a um país próspero para a maioria. p. 237
  • Os americanos são os defensores de um status quo mundial em que o Brasil e toda a América Latina só entram como fornecedores de matéria-prima, sem acesso a progresso industrial e tecnologia de ponta. p. 237
  • A "boca de fumo" real da grande corrupção brasileira está localizada no Banco Central e é gerenciada por pessoas com doutorado em Chicago, onde aprenderam todas as manhas para transferir o resultado do trabalho coletivo para as mãos de uma meia dúzia. p. 238
  • Uma "dívida pública" que não é nem "dívida", posto que sem contraprestação à sociedade, nem "pública", posto que cheia de falcatruas privadas, daí que jamais auditada e de conteúdo secreto, assegura o controle do orçamento público pago pelos pobres e pela classe média. p. 238
  • Usa-se o desconhecimento da população, provocado pela distorção sistemática da realidade produzida pela própria mídia, para manipulá-la ao sabor da conjuntura que convém à elite do atraso. p. 241
  • Todo o orçamento público e toda a arrecadação tributária, que é obtida onerando precisamente os mais pobres no Brasil, segundo pesquisa do IPEA, foram capturados para o serviço dessa dívida de origem obscura e secreta. p. 242
  • A balela de que as altas taxas de juros servem ao controle da inflação é desmentida pelo fato de que os componentes principais do IPCA têm impacto quase nulo na taxa de juros. p. 242
  • ... para seus mais dedicados estudiosos, como a coordenadora nacional da auditoria cidadã da dívida pública, a pesquisadora Maria Lúcia Fattorelli, a dívida pública é a verdadeira corrupção. p. 243
  • A taxa Selic de 45% ao ano, no governo FHC, turbinou uma dívida de origem suspeita até torná-la impagável como ela é hoje. p. 243
  • O espantalho da criminalização da política só serve para que os donos do mercado deleguem a política ao que há de pior e mais mesquinho do baixo clero político. p. 245
  • Já o espantalho da criminalização da esquerda e do princípio da igualdade social só serve para que a justa raiva e o ressentimento, percam sua expressão política e racional possível. p. 245
  • Assim, só para se ter uma ideia do tamanho da patranha, basta comparar a sonegação abertamente ilegal de impostos da elite, que é de 500 bilhões de dólares, com o dinheiro recuperado pela Lava Jato depois de cinco anos de "trabalho", que não chega a um bilhão de dólares. p. 249
  • Afinal, o fascismo sempre foi o "plano B" dos proprietários que só pensam no próprio bolso em todos os casos históricos relevantes. p. 250
  • Em nome da moralidade, do combate à corrupção e pelo suposto "bem do povo brasileiro", roubaram tudo o que puderam e nos deixaram muito mais pobres. p. 250
  • Este livro foi escrito precisamente com o intuito de esclarecer a gênese deste processo histórico de dominação simbólica de toda a sociedade brasileira pela elite do saque e da rapina - legitimada e tornada invisível pelo embuste do combate à corrupção só do Estado e da política. p. 251
  • ... a massa da classe média e suas frações mais conservadoras, infelizmente, amplamente majoritárias, acabam por dar vazão ao ódio aos pobres ao mesmo tempo que são exploradas pelo saque rentista. p. 251
  • ... cada vez mais dominado pela propaganda neoliberal que diz que as vítimas do desemprego e do subemprego precário, produzidas por um sistema econômico concentrador e improdutivo, são, elas próprias, as culpadas pelo próprio infortúnio. p. 253
  • Esse indivíduo isolado e indefeso é assolado por uma agressividade que não compreende e, desse modo, ele ou dirige contra si próprio a raiva que sente por sua própria pobreza e privação ou a canaliza contra bodes expiatórios construídos para este fim. p. 253
  • As necessidades emocionais de um povo tornado pobre e ignorante por sua elite são impiedosamente estimuladas por 400 mil robôs em um tipo de guerra suja já utilizada para a eleição do presidente americano Donald Trump. p. 255
  • Como já discuti em um livro anterior, a partir de pesquisas empíricas realizadas com os segmentos mais pobres da sociedade brasileira, a oposição "pobre honesto" versus "pobre delinquente" dificulta enormemente qualquer solidariedade de classe entre os mais pobres e marginalizados entre nós. p. 256
  • O pobre não é apenas pobre. Ele é humilhado e dominado por valores construídos para subjugá-lo. Isso confere ao fascismo enorme capilaridade e contamina a vida familiar e relações de vizinhança em todos os níveis da sociabilidade popular. p. 256
  • Os mecanismos opacos da dominação financeira, sejam os de mercado, como os juros escorchantes embutidos em tudo que compramos, sejam as formas estatais de apropriação do orçamento público como uma dívida pública fraudulenta e nunca auditada, precisam ser conhecidos e debatidos amplamente. p. 257

COMO O RACISMO CRIOU O BRASIL, 2021[editar]

Como o racismo criou o Brasil, Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021. ISBN 9786557330104

  • ... é fundamental explicar que, se o racismo racial pode assumir outras máscaras, então existem, obviamente, manifestações não raciais do racismo, que produzem o mesmo efeito destruidor e deletério nas pessoas. p. 8
  • A única maneira de verdadeiramente explicar o racismo é compreendermos o que ele destrói nas pessoas. p. 9
  • Uma classe/raça construída para que todas as outras possam se sentir superiores a ela, ajudando a justificar e legitimar uma sociedade que é desigual e perversa como um todo. p. 9
  • Veremos quanto de mentira e de manipulação existe na crença de que o oprimido conhece melhor do que ninguém a opressão que sofre. Acreditar nessa tolice é não compreender absolutamente nada sobre como funcionam as formas de humilhação e opressão na sociedade - e, portanto, contribuir para a sua continuidade. p. 9-10
  • ... a forma mais importante de opressão social na sociedade moderna se refere à estratificação da sociedade em classes sociais. p. 16
  • É que a classe pensada como renda diferencial ajuda a passar a falsa ideia de que a sociedade é um ajuntamento de indivíduos sem família, sem passado, sem contexto social, ou seja, sem pertencimento a nenhuma classe social, e que, portanto, lutam em igualdade de condições pela renda social a ser distribuída segundo a capacidade e o mérito individuais. p. 17
  • Como a renda é algo que se tem na vida adulta, toda a discussão se "esquece" do que aconteceu na infância e na adolescência dos indivíduos e que fez com que alguns cheguem a ganhar 500 vezes mais que outros. p. 17
  • Como o caminho social do mérito individual é esquecido, esse conceito de classe é a melhor arma ideológica já inventada para legitimar a meritocracia, ou seja, a ideia de que o mundo até pode ser difícil para alguns, mas é "justo", premiando o mérito individual dos que, por esforço e trabalho duro, conseguem ganhar 500 vezes mais que outros. p. 17
  • Ora, a meritocracia esconde o fato de as classes sociais serem os principais instrumentos que na verdade permitem reproduzir privilégios visíveis e invisíveis no tempo sendo a renda diferencial apenas o elemento mais tardio e mais visível entre todos. p. 17-18
  • O privilégio mais visível é o econômico. A relação familiar e de sangue, por meio dos títulos de propriedade e das estratégias de casamento e amizade dentro da mesma classe social, cria a classe de elite de proprietários, que detém todas as riquezas em pouquíssimas mãos. p. 18
  • Abaixo desse 0,1% da população, todas as classes lutam muito mais por outro tipo de capital, que não é visível como o dinheiro e a propriedade: o capital cultural, ou seja, a incorporação do conhecimento considerado útil e legítimo pela sociedade. p. 18
  • ... a classe média real, baseada na reprodução do privilégio educacional - que vai criar e implementar de modo invisível, e por isso mesmo extremamente eficiente, a farsa da meritocracia pela incorporação privilegiada e tornada invisível de capital cultural. p. 18
  • ... o sucesso escolar, ou seja, a chave de todo sucesso social, que será expresso em renda diferencial anos mais tarde, tem pressupostos emocionais e afetivos que são construídos desde o berço no horizonte familiar de cada classe social. p. 18
  • Disposições para o comportamento prático como disciplina, autocontrole, visão prospectiva e capacidade de concentração e de pensamento abstrato não são naturais nem algo a que todos têm acesso. Em sociedades como a brasileira, essas competências são, antes de tudo, verdadeiros privilégios de classe. p. 18
  • Como a socialização familiar é invisível de várias maneiras, não só porque é realizada no mundo privado e longe do público, mas também porque seus valores incorporados de modo automático e inconsciente em tenra idade, ela se presta a todo tipo de apagamento e favorece o esquecimento dos privilégios. p. 18-19
  • O hábito da leitura é criado a partir do exemplo dos pais, que faz a criança, que ama os pais, amar a leitura mais tarde. O gosto pelas línguas estrangeiras vem do exemplo do tio, admirado na família por falar alemão ou inglês sem sotaque. A capacidade de imaginação é despertada desde muito cedo pelas histórias cheias de fantasia em belos livros com imagens. E assim desenvolve-se também a disciplina amorosa do equilíbrio entre brincar e aprender, que irá cultivar a capacidade de renunciar ao presente em benefício de um bem futuro, fazendo nascer a visão prospectiva que literalmente cria o futuro como dimensão incorporada e automática da personalidade. Tudo isso é um privilégio de classe, no caso da classe média real brasileira, que cria e torna completamente invisível a base social por trás de todo mérito individual. p. 19
  • A socialização familiar é toda construída por exemplos práticos, não pelo discurso. São esses exemplos práticos que os filhos vão imitar e mais tarde reproduzir como herança de classe específica. p. 20
  • É essa transmissão familiar e escolar de valores positivos ou negativos invisíveis o que verdadeiramente define uma classe social. A renda diferencial é apenas um dos seus resultados tardios. p. 20
  • Para se falar de racismo no Brasil e em qualquer lugar deste mundo, é necessário perceber, antes de tudo, o amálgama inextricável entre classe social e raça, senão não poderemos compreender como o sucesso e o fracasso social já estão embutidos na socialização familiar e escolar primária da classe/raça negra e pobre. No Brasil esse amálgama constrói uma classe/raça de condenados à barbárie eterna. p. 20
  • Uma classe/raça de "novos escravos". E qualquer tentativa de Lula, irá produzir golpes de Estado que buscam mantê-la eternamente explorada, oprimida e humilhada. p. 20
  • Como a real produção da desigualdade é mantida em segredo, então as diferenças só podem se dever a gênero e raça, obviamente. p. 21
  • O lugar social, assim, não implica que se tenha consciência da dominação. Conclusão de resto óbvia, já que, se o oprimido tivesse essa consciência, ou já estaria em vias de se libertar, ou já não existiria dominação, pois a aceitação da própria inferioridade pelo oprimido é o fundamento central e mais importante de todo tipo de dominação estável que tenha existido na história humana. p. 22-23
  • ... houve um esforço dirigido para transformar o trabalhador em "colaborador", para eufemizar e esconder a consciência de sua superexploração; tenta-se também exaltar os supostos valores da liderança para possibilitar que, a partir de agora, o próprio funcionário, não mais o patrão, passe a controlar e vigiar o colega de trabalho. p. 33
  • ... o trabalhador tornado informal e sem quaisquer direitos ou garantias na verdade se torna empresário de si mesmo. E, o mais importante, se ele falhar nessa empreitada, a culpa é apenas dele. É necessário sempre culpar individualmente a vítima pelo fracasso socialmente construído. p. 33
  • ... serão apenas os membros mais aptos de cada uma dessas minorias, cuja posição de classe já era de relativo privilégio, os que terão efetiva oportunidade de ascensão social. p. 36
  • Agora todas as empresas de todos os ramos de produção disputam a contratação dos porta-vozes das bandeiras identitárias como forma de se venderem ao público como "emancipadoras". p. 37
  • Pode-se ganhar dinheiro - às vezes muito dinheiro - posando de representante não autorizado do sofrimento alheio. Como a maioria de mulheres e negros pobres está convenientemente silenciada e seu sofrimento não chega à esfera pública seletiva, abre-se um mercado promissor e crescente para seus autodeclarados representantes. p. 37
  • O novo capitalismo financeiro, que tudo privatiza, privatiza também a política e o próprio discurso da emancipação ao cooptar e comprar as lideranças mais talentosas dos grupos sociais oprimidos. p. 37
  • Para o neoliberalismo, a inclusão tem que ser individual e meritocrática, e não da maioria oprimida como um todo. p. 38
  • Na estratégia do branqueamento o decisivo é que a ascensão de negros e mestiços seja individual, daqueles que aceitam as regras do sistema dominante, e nunca coletiva, o que poderia pôr o sistema como um todo em xeque. p. 38
  • Para a adequada compreensão das lutas sociais de nosso tempo em geral, assim como da desigualdade e do racismo brasileiro em particular, é necessária uma reconstrução da realidade vivida, que dê conta do sofrimento e da humilhação que são produzidos de modo independente da articulação de movimentos sociais concretos - midiaticamente privilegiados ou não. p. 44
  • Gostaria de chamar de racismo precisamente esse processo de tornar inarticulado o mundo moral compartilhado coletivamente de modo a manipular o sofrimento social para jogar os oprimidos uns contra os outros e convencer as vítimas da própria inferioridade. p. 54
  • Para os indivíduos de hoje, que já nascem e são socializados sob o impacto dessa ideia, é fácil imaginar que a noção de indivíduo seja tão natural quanto a luz do Sol. Nada mais enganoso. p. 67
  • A noção de indivíduo como realidade moral refletida foi produto de condições sociais muito específicas. Foi uma ideia que teve de ser "inventada", criada historicamente, e por isso o estudo da evolução das formas religiosas da moralidade tem importância decisiva. p. 67
  • Do judaísmo o cristianismo herda não só a noção decisiva do deus pessoal e a tensão ética com o mundo profano que se constitui a partir dela mas também o vínculo moral individualizado dirigido à consciência do fiel. p. 69
  • A partir do século IV, Santo Agostinho passa a interpretar o caminho da salvação de todo cristão nos termos da noção de virtude platônica, ou seja, como uma luta pelo controle do espírito sobre os desejos incontroláveis do corpo. p. 69
  • O cristianismo adotou a perspectiva platônica da dominância da razão sobre as paixões, e a santidade e a salvação passaram a ser expressas nos termos da noção de virtude platônica. p. 70
  • ... a noção de interioridade. Ou seja, a "invenção histórica" da ideia de que temos dentro de nós mesmos uma espécie de "espaço interior", que não se confunde com nossos órgãos vitais e que seria responsável por toda nossa vida sentimental, moral e intelectual. Uma espécie de lugar de morada da nossa alma e do nosso espírito, qualquer que seja o sentido que atribuímos a esses conceitos. A noção de interioridade será constitutiva da ideia de subjetividade no Ocidente. p. 70
  • O conhecimento não é uma luz exterior lá fora, uma revelação portanto, como era para Platão, mas algo interior a nós mesmos, sendo antes uma criação que uma revelação. p. 70
  • Nada singulariza mais o Ocidente do que a construção da individualidade e da subjetividade como noções morais fundamentais. p. 71
  • Como em todas as grandes revoluções morais do Ocidente, também o princípio da subjetividade é inicialmente religioso. Agostinho dá o passo em direção à interioridade porque esse é um passo para a verdade divina. É isso que torna a dimensão da primeira pessoa uma noção tão decisiva que vai se generalizar a ponto de se tornar uma ideia aparentemente tão "natural" quanto o fato de respirarmos para viver. p. 71
  • Apenas porque essas ideias de subjetividade e de virtude estavam ligadas ao "prêmio" especificamente religioso da salvação, elas puderam alcançar e convencer tanta gente e assumir, pela força do processo de socialização, a aparente obviedade que as caracteriza hoje. p. 71
  • E á decisivo o fato de Agostinho já construir toda uma hierarquia valorativa com base nessa concepção. Passa a existir um abismo insuperável entre os seres capazes de raciocínio e os que carecem dessa faculdade. p. 72
  • Assim, além da hierarquia entre as diversas espécies vivas, conferindo aos humanos um sentimento de especialidade e superioridade responsável inclusive pela atração que esse tipo de ideia exerce, abre-se também, entre o próprios seres humanos, o espaço para pensar e legitimar hierarquias segundo o comportamento mais ou menos "racional" de cada um. p. 72
  • ... a oposição entre espírito e corpo será também o fundamento de todas as nossas avaliações sobre o mundo, apesar de quase sempre se fazer presente de forma meramente implícita e não refletida. Tudo que associamos ao que é superior e nobre irá se referir ao espírito, ao passo que tudo que é inferior e considerado vulgar será associado ao corpo. p. 72
  • Séculos e séculos de pregação diária na mesma direção terminam por tornar a avaliação do mundo social a partir da hierarquia moral cristã e platônica algo "natural" - ou seja, percebido como evidente, automático e pré-reflexivo. p. 73
  • Dito de outro modo: a hierarquia moral baseada na oposição entre corpo e espírito engendra também toda a hierarquia secular entre as classes sociais na competição por recursos escassos. Ela passa a ser a forma universal de avaliação não apenas do valor religioso diferencial entre os fiéis, que decide sobre a salvação no "outro mundo', mas também do valor social diferencial entre todos os indivíduos e todas as classes sociais "neste mundo". p. 74
  • Instaura-se então uma dialética da distinção social: cada vez que um comportamento se universaliza para as classes subordinadas é necessário produzir novos padrões de comportamento para manter e legitimar a distância social. p. 76
  • Por ora, o essencial é compreendermos que todas as avaliações morais que fazemos sobre o mundo e sobre nós mesmos remetem, sem exceção, à oposição entre corpo e espírito. p. 76
  • Sem o prêmio da salvação agindo como combustível, não poderíamos entender como os indivíduos começaram a mudar seu comportamento a partir desses estímulos e precisamente nessa direção. p. 77
  • O racismo - seja o de classe ou de raça, de cultura ou de gênero - é sempre, em todos os casos, um processo de animalização, de reduzir o outro a corpo animalizado e, portanto, "inferior". p. 77
  • O desafio de qualquer forma de dominação estável é "convencer" os oprimidos de sua própria inferioridade. Sem isso, o domínio é instável e violento. 77
  • Se toda virtude está vinculada ao espírito, então toda falha moral está relacionada ao corpo e à falta de espírito. Toda forma de dominação duradoura e bem-sucedida precisa convencer os dominados de sua própria inferioridade justamente nesses termos. p. 77
  • Obviamente, o bem de salvação coletivo típico do judaísmo envolve intensa vigilância grupal do comportamento individual, o qual passa a ser de interesse de toda a comunidade. p. 78
  • Se o trabalho era um chamado divino, ele passa a ser sagrado, e seu desempenho bem realizado, o novo e verdadeiro caminho da salvação protestante. Essa mudança fundamental é a base da reforma protestante que efetivamente revolucionou e põe de cabeça para baixo toda a hierarquia social anterior. É que, antes de Lutero, o trabalho, tanto no undo antigo quanto no medievo, era coisa de escravo e de servo, uma atividade indigna, coisa de gente inferior. Nobre e virtuoso era não trabalhar e viver do trabalho alheio p. 80
  • De certa maneira, agora todos podem sentir orgulho do próprio trabalho simultaneamente. Surge aqui uma possibilidade alternativa de produção de autoestima que não mais é conquistada necessariamente "contra os outros' ou "às custas de alguém" que tem que ser humilhado para que possamos nos sentir "superiores'. p. 81
  • ... com o nivelamento e a universalização das possibilidades de reconhecimento social nasce a possibilidade de reconhecimento do valor social de todos e de cada um. Esse foi o horizonte que a nova valorização do trabalho e da vida cotidiana pelo protestantismo abriu. Além disso, essa é a verdadeira base moral de toda democracia efetiva. Sem isso, não temos democracia real nem lei que possa valer para todos. p. 82
  • A inclusão dos que trabalham pelo bem comum na comunidade passará a ser o fundamento último de qualquer universalização do respeito mútuo e do reconhecimento social na sociedade moderna. O espírito de igualdade se torna ainda mais evidente quando levamos em conta o aspecto central da ênfase não no tipo de trabalho que se faz, mas na forma como qualquer tipo de trabalho útil para a vida comum é realizado. p. 82
  • Como para dominar o undo é preciso, antes, conhecê-lo, saber como ele funciona empiricamente, então, pouco a pouco, a ciência vai se entronizando como a esfera principal e de maior prestígio simbólico no lugar da religião. p. 85
  • A sociedade industrial e secular que nasce a partir da decadência da religião como única matriz de sentido do mundo funda o mundo profano do utilitarismo, que substitui o serviço à divindade e à salvação eterna pelo serviço à sociedade e ao bem comum. O passo seguinte, historicamente, é o "esquecimento" de qualquer fonte moral, seja divina ou profana, como determinante do nosso comportamento, criando então o mundo do consumo e do hedonismo individualista que conhecemos hoje. p. 86-87
  • Já que não temos mais a percepção consciente da força dos valores morais nem compreendemos como eles funcionam, a partir desse ponto histórico, toda vez que falarmos em moralidade teremos que explicar e reconstruir algo, precisamente como estou fazendo neste livro, que nenhum indivíduo articula mais espontaneamente. p. 87
  • ... veremos como as dimensões do trabalho e da família se constroem como fontes de moralidade alternativas para os indivíduos das sociedades pós-tradicionais e como essas instâncias, por sua vez, se articulam com as ideias de esfera pública e democracia. p. 89
  • Ao ligar a noção de trabalho à de valor individual, o protestantismo não só desvalorizou o ócio e a contemplação não produtiva como nivelou todas as mulheres e todos os homens, colocando o desempenho diferencial no trabalho, e não mais o nascimento e o sangue, como o elemento decisivo para a construção do valor do indivíduo. p. 89
  • O reconhecimento social dos outros em relação a nós também depende de nossa capacidade de contribuir para o bem comum do qual todos participam. Tanto isso é verdade que a progressiva extensão dos direitos políticos aos trabalhadores se deu, historicamente, a partir do convencimento público de sua participação e sua contribuição na construção da riqueza geral. p. 90
  • Agora nos orgulhamos do autocontrole e da disciplina que nos impomos, não mais como obediência a Deus mas para a realização racional de nossos próprios objetivos. p. 90
  • Um sujeito autocontrolado e disciplinado, capaz de renúncia no presente em nome de um ganho futuro - que é o que "pensamento prospectivo" significa -, pode idealmente implementar qualquer fim ou objetivo na realidade exterior. Em outras palavras esse indivíduo é o instrumento perfeito para a realização de qualquer fim econômico, social ou político. Ele não é, em si, mais nada, mas pode ser moldado e utilizado para qualquer fim. p. 92
  • O sujeito racional moderno é, portanto, um habitus, ou seja, uma certa forma de economia emocional pré-reflexiva que implica controle dos afetos e cálculo de suas chances futuras. p. 92
  • Vejam bem, cara leitora e caro leitor. Aqui não importa tanto sua substância ou seu conteúdo, ou seja, quem você é, se é sensível ou não, generoso ou mesquinho, apaixonado ou frio. O que importa é se é possível contar com a sua energia produtiva - com sua disciplina, seu autocontrole e seu pensamento prospectivo - como uma peça útil na divisão social do trabalho. p. 92
  • Aqui, como um projeto político do bloco antipopular composto por elite e classe média branca, há toda uma classe social de pessoas construídas sem o habitus produtivo e disciplinar mínimo e que, por conta disso, não são respeitadas nos seus direitos mais básicos enquanto indivíduos. p. 93
  • Autenticidade ou expressivismo significa que o que temos "dentro de nós", no lugar que antes pertencia a Deus, é precisamente o conjunto de nossos sentimentos e emoções mais íntimos e que, portanto, nos definem melhor que qualquer outra coisa. p. 94
  • O mais importante é que passamos a ter a obrigação de viver de acordo com nossos sentimentos autênticos, de vive de acordo com nossa autenticidade, ou seja, não é mera escolha superficial, mas um dever moral para cada um de nós. p. 94
  • Ser bem-sucedido no trabalho e no amor condiciona a forma como avaliamos a nossa própria vida e a vida dos outros. Para quem imagina que nossa comportamento é determinado apenas por dinheiro ou poder, refletir sobre esse fato pode ensinar muita coisa. p. 95
  • Pela primeira vez na história havia a possibilidade de reconhecimento social abrangente e universal para todos que trabalham produtivamente, o que explica o enorme poder revolucionário e democrático da mensagem protestante. p. 95
  • Como a dimensão da moralidade tende a ser reprimida pelos poderes políticos e sociais e aparentemente naturais sem origem, a reconstrução que fizemos até este ponto nos permite recuperar a ideia de que somos, antes de tudo, seres morais em processo de autointerpretação e aprendizado. São as necessidades e os estímulos morais que comandam nosso comportamento e nossa vida em todas as dimensões. p. 99
  • ... o indivíduo não cai das nuvens nem é uma página em branco, como alega o liberalismo, mas é, desde sempre, um produto social. p. 100
  • A questão central aqui é perceber que o principal fator determinante da vida social não é a autopreservação material ou os interesses econômicos, como se dirá mais tarde, mas sim regras morais - mesmo que tornadas implícitas e invisíveis - de reconhecimento mútuo. p. 101
  • ... o contrato social não encerra a luta de todos contra todos. Ao contrário, o conflito é um elemento constitutivo da vida social, pois possibilita a construção de relações sociais cada vez mais desenvolvidas, refletindo o processo de aprendizado moral da sociedade em cada estágio. p. 103
  • Na verdade, só podemos compreender adequadamente nossa vida contemporânea e sua lutas sociais e políticas se conseguimos compreender a dinâmica da mudança social comandada pelas demandas morais. p. 105
  • As pesquisas de Winnicott demonstraram que a retirada do carinho materno, mesmo quando todas as outras necessidades corporais foram atendidas, acarretou graves distúrbios no comportamento de bebês. p. 107
  • ... é a ideia de que qualquer indivíduo, pertencente a qualquer grupo social, não pode ficar excluído do processo de deliberação racional da vontade coletiva que constitui a soberania popular. p. 110
  • ... foram as lutas das classes trabalhadoras, defendendo sua contribuição à riqueza e ao bem-estar geral através do trabalho, que permitiram a universalização desses direitos a todos. Essas lutas permitiram o reconhecimento dos trabalhadores não apenas como força de trabalho explorada mas como cidadãos com direitos iguais. p. 111
  • A noção de cidadania, portanto, está ligada à soberania popular, ou seja, à possibilidade de participar com igual direito da escolha racional e autônoma das regras da vida social. p. 111
  • Veremos como a história brasileira pode ser analisada não apenas como um processo incompleto de reconhecimento universal, mas também como um projeto político deliberado para impedir o reconhecimento social da classe/raça dos excluídos e marginalizados. p. 111
  • Cada vez que um governo pretende incluir social e politicamente a classe/raça de negros e pobres marginalizados, temos, invariavelmente, um golpe de Estado para evitar que isso aconteça. p. 111-112
  • ... não compreenderemos o que é o racismo em suas diversas formas se não compreendermos o que é o reconhecimento social nas suas diversas dimensões. p. 116
  • Contra a articulação e a defesa política consciente das massas excluídas militam os interesses de grupos sociais privilegiados, que vão construir uma interpretação da vida social considerada legítima precisamente por conta de seu monopólio privado da informação e da difusão do conhecimento. p. 118
  • Em países como o Brasil, os racismos de classe e de raça permitem até que o próprio princípio da igualdade jurídica seja atacado, tornando-o meramente formal para os excluídos e abandonados na base da pirâmide social, composta em sua esmagadora maioria por pessoas negras. p. 119
  • A construção do sujeito de direito, que pressupõe sua participação na formação racional da vontade expressa na soberania popular, exige, por exemplo, algum nível de escolarização - daí a importância da escola obrigatória em muitos países a partir do século XIX. p. 120
  • Com base na oposição corpo/espírito, passa a existir essa estrutura dupla no Ocidente, que possibilita todo aprendizado real mas também toda construção de preconceitos e racismos. p. 120
  • As classes do privilégio são as classes do espírito, enquanto as classes trabalhadoras são as classes do trabalho manual e do corpo. p. 121
  • Ora, se o Ocidente construiu toda a sua gramática moral com base na oposição corpo/espírito, então nada mais razoável que todo preconceito e todo tipo de racismo assumam a forma mais ou menos velada de um processo de animalização, de uma perda de humanidade percebida em termos espirituais e, no limite, de uma percepção social de suas vítimas como subgente animalizada - com toda a ferida existencial e toda carga negativa e mórbida que isso implica. p. 121
  • Tudo funciona como se as antigas culturas religiosas estivessem ativas até hoje, separando os "protestantes", ou seja, nos novos "brancos" da ideologia imperial, dos "não protestantes", ou seja, os novos "negros", inferiorizados e humilhados de modo a serem explorados com indiferença e sem culpa. p. 122
  • Especialmente na sua versão do "excepcionalismo americano", mas também na Europa, a construção da "superioridade protestante" é, hoje em dia, uma crença popular fortemente enraizada. p. 123
  • ... cria a indiferença, como um sentimento compartilhado nas sociedades ricas, em relação ao sofrimento, à manipulação e à exploração do Sul global. A indiferença da mídia mundial em relação à tragédia recente brasileira, de um processo de inclusão social interrompido por um golpe de Estado orquestrado nos Estados Unidos com a colaboração da elite colonizada brasileira, mostra o que acabo de dizer. p. 123
  • A solidariedade com as árvores da Amazônia é centenas de vezes maior do que com as dezenas de milhões de vidas e chances de futuro perdidas. p. 123
  • A socialização familiar e escolar no mundo inteiro tem como intuito construir nas crianças um habitus disciplinar: um conjunto de predisposições para o comportamento destinadas a fabricar produtores úteis para o mercado e cidadãos e clientes para o Estado. Nada disso é "natural" nem se dava desse modo no passado. p. 124
  • Mas ninguém nasce com disciplina, autocontrole, pensamento prospectivo ou capacidade de se concentrar. Apenas a socialização familiar privilegiada, capaz de produzir modelos de comportamento nesse sentido, pode transmitir com sucesso esse tipo de herança imaterial. p. 124
  • Em sociedades como a brasileira, habituadas a produzir e reproduzir indefinidamente contingentes de marginalizados e humilhados, acostumou-se a naturalizar a marginalidade, a exclusão e a humilhação dessas dezenas de milhões de pessoas. p. 125
  • O que é produzido 'culturalmente" no Brasil é a reprodução, com novas máscaras, do descaso e do prazer escravocrata de humilhar e oprimir. Por conta disso, toleramos a existência de subgente, ou seja, de pessoas cuja socialização familiar e escolar, que corresponde à socialização de classe, não dá a elas qualquer chance de integração na dimensão econômica e no mercado de trabalho competitivo, por exemplo. p. 126
  • Como veremos, esta é a real diferença em termos de aprendizado moral entre as sociedades concretas: se toleramos ou não a fabricação de indivíduos percebidos como lixo descartável. p. 127
  • Assim, será necessário, antes de tudo, perceber a permanência do racismo, quando ele é renomeado como "cultura" de modo a continuar sendo racista sem que ninguém perceba. p. 137
  • Assim que chegava à fazenda do novo proprietário, o indivíduo era surrado severamente sem nenhum motivo. O objetivo era tornar automáticos o medo e imposição da vontade e do arbítrio do novo senhor. O intuito era a desumanização. Nada muito distinto do que faz até hoje a polícia da classe média branca e da elite com os jovens negros nas periferias das grandes cidades. p. 137
  • No século XIX, o século da ciência, ou seja, o século no qual a ciência passa a dominar a linguagem da esfera pública no lugar da religião e fornecer o material de justificação das práticas sociais dominantes, o racismo assume a forma do racismo científico. p. 138-139
  • A interpretação científica dominante, a qual sempre é, ao mesmo tempo, a opinião dos jornais e da nascente mídia, e, portanto, da opinião pública como um todo, via "racializar" a questão social no Brasil desde a abolição, implantando um paradigma de explicação e legitimação da realidade social que culpa o povo, negro e mestiço, e não a elite que o explora, pelo atraso e pela pobreza relativa do país. p. 142
  • ... a tradição do falso moralismo da corrupção supostamente presente apenas no Estado seria no futuro a forma de ser racista e segregador tirando onda de que é defensor da moralidade pública. p. 150
  • No Brasil, o culturalismo até hoje dominante será uma espécie de "cópia no espelho" desse racismo, apenas invertendo seus termos e usada para oprimir o próprio povo. p. 151
  • ... racismo prático, no entanto, tem que ser legitimado cientificamente da mesma maneira que a vida prática das sociedades tradicionais tinha que ser legitimada religiosamente. p. 151
  • ... dom mesmo modo que a inteligência brasileira foi dominada pelo racismo explícito do século XIX, ela também será dominada pelo racismo implícito do culturalismo do século XX, que passa a dominar as ciências sociais mundiais. p. 152
  • A ciência globalmente dominante, como veremos, vai abandonar a linguagem baseada nos estoques raciais para começar a falar de estoques culturais, continuando a atribuir, no entanto, os mesmos defeitos e as mesmas virtudes das "raças" agora à "culturas". p. 152
  • Os Estados Unidos conseguiram engajar suas melhores mentes durante várias gerações, no serviço meio patriótico, meio intelectual de difundir e dissimular o exercício do poder de seu país como algo desejável e benévolo para os povos explorados e humilhados por ele. p. 164
  • Segundo a teoria da modernização - aplicada à questão do desenvolvimento diferencial em nível global -, a expansão americana representaria de modo neutro e automático um aumento do espaço de liberdade no mundo, reproduzindo assim antigas concepções de destino manifesto e do imperialismo americano interno anterior. p. 166
  • Assim, o imperialismo informal americano não se dirigiu apenas à contenção política dos recalcitrantes e à dominação do mercado, mas pretendeu também construir um estilo de vida totalizador, a partir do qual todas as dimensões do espírito humano, nas suas virtualidades cognitivas, morais e estéticas, passassem a ter os Estados Unidos como referência absoluta e idealizada. p. 166-1667
  • Dominar simbolicamente significa, nesse sentido e antes de tudo, convencer o oprimido de sua própria inferioridade. p. 168
  • A teoria da modernização deve, portanto, não apenas convencer seu próprio povo de sua superioridade e com isso produzir conformismo interno e obediência às elites locais. Ela deve também convencer os povos, destinados agora a serem colonizados por ideias supostamente científicas, não mais apenas pelo chicote ou pelo rifle, de que eles próprios são como crianças ou delinquentes juvenis: possuem cérebro, mas não sabem usá-lo, além de serem irresponsáveis e dominados pelas emoções. p. 168
  • A ciência do dominador deve ser uma espécie de "pedagogia para a opressão", na medida em que o dominado está condenado a ser pupilo para sempre. p. 168-169
  • Uma inteligência que, salvo raríssimas exceções, irá agir como preposto e representante dos interesses das piores elites, fingindo que se comporta criticamente em defesa do povo. p. 169
  • Como no caso da teoria da modernização, o tipo de material simbólico utilizado pela inteligência brasileira para retirar a autoestima do próprio povo é a noção imprecisa, ambivalente e compósita de "cultura". p. 169
  • Mas o que comprova o estatuto de "bom escravo" das elites e da intelectualidade brasileira é que ambas farão uso dos mesmos preconceitos que os americanos utilizaram para dominar simbolicamente o mundo, só que nesse caso para oprimir e humilhar o próprio povo. p. 170
  • Afinal, qual a diferença entre o "homem cordial", como pura negatividade e animalidade, e o "mulato doentio" do racismo explícito do conde Gobineau que discutimos antes? p. 171
  • Para o grande sociólogo americano C. W. Mills, o self-made man e o pioneiro se mantêm, depois da Guerra Civil Americana, apenas como uma ideia e um ideal sem correspondência na realidade. Mas o intelectual colonizado brasileiro só se interessa pela idealização fantasiosa, sem qualquer vínculo com a realidade, desde que possa servir de contraponto à humilhação de seu próprio povo. p. 173
  • Um povo escravizado intelectualmente já nasce e está condenado a pensar a vida inteira como um servo dócil que engole sem reflexão as ideias de seu algoz como se fossem suas. p. 174
  • Se todo o povo é percebido como não confiável, corrupto e cordial, por que Buarque projeta a influência desse suposto estigma cultural unicamente no Estado e na política? p. 175
  • Nada mais perfeito para criminalizar a soberania popular do que estigmatizar a política e a ação do Estado enquanto tais, não é mesmo? p. 175
  • Ao se construir a autoimagem de um povo de corruptos que elege políticos corruptos - que irão, por sua vez, dominar um Estado patrimonial igualmente corrupto -, constrói-se também a justificativa perfeita para a legitimação de golpes de Estado supostamente contra a corrupção sempre que a elite antipopular não estiver contente com quem ocupa o poder. p. 175
  • O ponto aqui não é sequer o fato de o Estado inglês, por exemplo, de Henrique VIII ter se utilizado de exatamente os mesmos subterfúgios que o Estado português, como distribuição de privilégios e monopólios para os amigos e prisão na torre de Londres para os inimigos. Mais ridícula é decisivamente a presunção anacrônica - a distorção de perceber a história passada com ideias que só fazem sentido hoje em dia - de chamar de "corrupção" a distribuição de privilégios e monopólios do Estado na Idade Média. p. 178
  • Ora, o sentido moderno de corrupção exige a noção de propriedade pública que possa ser indevidamente apropriada por um particular. p. 178
  • A noção de propriedade pública, por sua vez, só pode nascer por força da ideia de soberania popular, ou seja, da ideia segundo a qual não mais o "sangue azul" e divino dos reis deve servir de justificativa última do poder legítimo, mas sim a vontade popular soberana. p. 178
  • Faoro foi também um dos principais autores do mito de que o estado de São Paulo seria uma espécie de Massachusetts do Brasil e de que suas elites representariam algo análogo ao "americano protestante" nos trópicos. Essa ideia é fundamental, já que corrupto e atrasado tem que ser apenas o povo, e não as elites que o escravizam. p. 178
  • É necessário usar e manipular o prestígio científico de Max Weber e falsear completamente sua teoria, transformando-a em uma história de felicidade e sucesso continuado. Foi isso que Parsons fez com a teoria da modernização, que é a base da atual teoria da globalização e funciona até hoje como pano de fundo hegemônico e dominante de qualquer discurso afirmativo sobre o mundo globalizado. p. 182
  • Como dizia o próprio Weber, os ricos e felizes não querem apenas ser ricos e felizes. Eles querem se saber tendo direito à riqueza e à felicidade. Do mesmo modo, poderíamos acrescentar, é necessário fazer com que o oprimido se convença de que sua própria opressão é merecida, senão ela é impossível de se reproduzir no tempo. p. 183
  • O protestante do século XVII "escolhia" a temperança e a autodisciplina como meios de salvação individual; hoje não temos escolha: ou somos disciplinados como os protestantes de antigamente, ou estamos fadados ao fracasso e à exclusão social. p. 183
  • Essas instituições disciplinadoras são as mesmas e agem de modo muito semelhante nos quatro cantos do mundo. São fábricas, escolas, burocracias públicas e privadas, prisões, empresas e até modelos familiares criados pelo cinema e por séries de TV ou da Netflix. p. 183-184
  • ... todas as famílias de todas as classes sociais vão passar a educar seus filhos procurando socializá-los antecipadamente de acordo com o padrão de disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo que é o que será exigido deles mais tarde. p. 184
  • Boa parte da competição social entre as classes será pré-decidida já nessa dimensão familiar, seja na transmissão de capital econômico, seja na transmissão dos pressupostos invisíveis para a reprodução do capital cultural, o que é ainda mais importante para as classes que não possuem propriedade econômica efetivamente relevante. p. 184
  • O que importa é que somos todos socializados, desde tenra idade, de modo a que incorporemos a mesma economia emocional do protestante ascético. Esse fato é o decisivo, já que mostra a superficialidade de todo culturalismo que imagina que apenas algumas culturas do Ocidente teriam acesso à disciplina necessária para a "dominação do mundo" em todas as suas dimensões. p. 184
  • A reatividade consiste em aceitar todos os pressupostos não tematizados do discurso dominante como existentes e válidos e apenas mudar o sentido da crítica apontando-a contra o próprio dominador. p. 185
  • Tudo acontece como se, efetivamente, o mundo fosse dividido entre um Norte moderno e superior e um Sul tradicional e inferior - exatamente como Parsons e a teoria da modernização defendem desde meados do século passado -, cada qual com seu critério específico de classificação e avaliação. p. 186
  • O racismo implícito evita que a questão real que esclarece o desenvolvimento diferencial, ou seja, os processos de aprendizado coletivo realizados ou que deixaram de se realizar, seja devidamente discutida. p. 186-187
  • O racismo consiste em congelar essas heranças culturais como causa última de uma superioridade ou inferioridade inata que tende a se universalizar para todas as dimensões da vida. p. 187
  • ... a manutenção da divisão global entre Norte e Sul, vistos como tipos distintos de sociedade, equivale à manutenção prática dos racismo cultural que essa visão envolve e torna invisíveis os mecanismos pragmáticos de todo tipo de dominação material e simbólica. p. 187
  • O que é necessário, portanto, é criticar e desconstruir explicitamente o racismo científico que se traveste de culturalismo e que sobrevive precisamente porque ninguém parece ter distanciamento suficiente em relação a esse racismo primordial para percebê-lo enquanto tal. p. 187-188
  • Esse é precisamente o sentido da teoria da modernização que estamos reconstruindo aqui. Mais do que mera "teoria", ela é uma releitura das antigas concepções de "destino manifesto" e do imperialismo americano como representante supremo da liberdade no mundo. p. 197
  • Desse modo, o imperialismo informal americano não se restringiu a criar apenas a contenção política e a dominância de seu mercado, mas pretendeu construir um estilo de vida, ou seja, toda uma percepção cultural e social específica, tendo os Estados Unidos como modelo ideal integrando esses interesses políticos e econômicos. p. 197
  • ... a maior fraqueza relativa dos Estados nacionais do Sul global implica o enfraquecimento da soberania popular nesses países a ponto de o comando sobre as decisões econômicas mais importantes ficar a cargo de uma rede de bancos centrais mundiais comandados pelo capital financeiro globalizado. A tese da "autonomia" do banco central, ou seja, a autonomia em relação à política e à soberania popular e a absoluta dependência em relação aos bancos privados, é a melhor prova empírica disso. p. 198
  • Depois, há ainda a redefinição do mundo do trabalho, com a "flexibilização", a perda de direitos e o uso da linguagem empreendedora como forma de submeter e aliciar os trabalhadores que ganham cada vez menos e são estimulados a ver no colega seu inimigo. p. 198
  • ... apesar de Bourdieu não perceber o reconhecimento social como aprendizado, ele mostra como a distinção social causada pela negação de reconhecimento social aos outros é a base real de todas as relações de dominação entre classes e grupos sociais. p. 200
  • Afinal, se pensarmos bem, o que passa a ser considerado esteticamente de bom gosto se torna rapidamente uma referência de superioridade também moral. p. 201
  • ... o conjunto de gostos individuais forma todo um estilo de vida, o qual passa a ter a função de representar a superioridade social de uma forma de vida específica. p. 201
  • A estética é uma excelente ferramenta para legitimar a desigualdade para quem oprime e para quem é oprimido por ela. p. 201
  • O que dificulta a percepção da importância cotidiana dessas redes invisíveis de solidariedade e preconceito é que imaginamos, muito ingenuamente, que toda interação social é consciente e mediada pela linguagem explícita. p. 202
  • Na verdade, existe muito pouco de consciente e refletido na nossa relação individual com a sociedade. Primeiro, ninguém nasce adulto. Somos todos criados pela socialização familiar e escolar. O processo de incorporação dos valores sociais nas crianças se dá por identificação afetiva com pais e professores ou quem quer que exerça essas funções. p. 202
  • ... Pierre Bourdieu cunhou o conceito de habitus. Habitus é o conjunto de predisposições para o comportamento que adquirimos no decorrer da vida e da nossa formação como indivíduos. É necessário perceber o habitus, no entanto, como uma dimensão pré-reflexiva ou inconsciente. Ou seja, nosso comportamento é predeterminado pelo conjunto de percepções e avaliações que incorporamos desde a infância sem nos darmos conta. p. 203
  • Como diz Bourdieu, tendemos todos a "transformar necessidade em virtude", ou seja, fingir que aquilo que somos forçados a fazer por imposição da vida foi escolha nossa. p. 203
  • Cada classe social possui uma socialização familiar particular e tende a produzir um habitus específico, ou seja, um tipo de gente humana peculiar, com uma economia emocional, moral, estética e cognitiva muito específica que reflete sua posição no mundo social. Daí que perceber a construção sociocultural da classe social seja tão importante. p. 203
  • Embora sempre possam existir exceções individuais que abrangem uma minoria, a imensa maioria da classe social tende a reproduzir os mesmos privilégios, sejam eles privilégios negativos ou positivos. p. 204
  • Toda renda diferencial é produzida por uma socialização familiar e escolar específica. Ou seja, toda renda é, portanto, construída pelo pertencimento de classe. Daí ser a classe social tão importante e daí toda a ênfase das ciências da ordem e da imprensa venal em negar a construção diferencial de indivíduos pelo pertencimento de classe, mostrando apenas o resultado, a renda, como se fosse fruto milagroso do mérito individual. p. 204
  • As classes do privilégio, como vimos, tendem a desenvolver aquilo que poderíamos chamar de habitus estético. Como representantes do espírito, transmitem aos seus filhos o amor à leitura, o gosto por línguas estrangeiras desde cedo, a dedicação ao pensamento abstrato, o hábito do consumo legítimo de objetos culturais, etc. O conjunto desses atributos, por sua vez, propicia a adoção de um estilo de vida como soma geral de todas as escolhas estéticas de uma classe que se vê como representante do "bom gosto". p. 204-205
  • ... a estrutura de classes moderna cria em todos os lugares três tipos de "ser humano" ou de habitus específicos e socialmente construídos: o habitus estético das classes do privilégio, o habitus disciplinar das classes trabalhadoras e o habitus precário das classes marginalizadas. p. 205
  • Como a produção de indivíduos diferenciais pelo pertencimento de classe é tornada invisível, tendemos a perceber a sociedade como um conjunto de indivíduos que lutam mais ou menos em igualdade de condições por recursos escassos. p. 206
  • Como o habitus - ou seja, a soma de todas as predisposições emocionais, cognitivas e avaliativas que nos orientam a partir do pertencimento de uma classe específica - é inconsciente, existe uma distância fundamental entre a vida que levamos e a vida que pensamos levar. p. 207
  • Se cada classe social produz seres humanos tão diferencialmente aparelhados para a competição social desde o berço, não existe mérito individual que não seja produto de privilégios sociais embutidos e implícitos na socialização familiar e escolar de classe. p. 208
  • Ninguém nasce com capacidade de se concentrar. Esse é mais um privilégio de classe de quem teve exemplos práticos de amor à leitura e estímulo ao pensamento abstrato e á fantasia desde o berço. p. 209
  • ... a sociedade moderna esconde a produção de privilégios injustos desde o berço e tende a justificar privilégios de classe como mérito individual. Portanto, a sociedade moderna diz que é uma coisa, ao passo que é efetivamente algo muito diferente. p. 209
  • Com o tempo, as classes sociais tendem a produzir uma espécie de "raça" particular, como diria Foucault, como se suas diferenças construídas fossem "naturais" ou "biológicas". p. 210
  • Que a sociedade não tem a menor ideia de como as classes sociais se constituem fica provado na forma praticamente universal de classificá-las pela renda que auferem. p. 210
  • Tudo se passa como se as distinções sociais e os processos formativos da infância e da adolescência fossem irrelevantes ou de pouca monta e a renda do adulto simbolizasse seu mérito individual. Esse é um argumento absurdo, já que apenas a socialização diferencial na infância e na adolescência pode explicar tamanha variação de renda e de prestígio social do indivíduo adulto. p. 210
  • Para a elite, qualquer gasto do orçamento público com essa "gentalha" deve ser evitado, o que lhe permite saquear livremente o orçamento público, pago, em sua maior parte, precisamente pelos negros e pobres. p. 215

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